23 de abril de 2009

ANJO APAIXONADO


Nei Duclós (*)

Buscamos palavras inesquecíveis. Afirmações encantadoras. Expressões que cruzam o tempo. Queremos o verbo encarnado no cotidiano, a identificação do nosso sonho com uma verdade sem contestação. Uma boa frase aprisiona para sempre e te carrega, fardo suave a cumprir destinos. É um mistério porque uma ordenação determinada de vocábulos gruda no coração para nunca mais ir embora.

Às vezes, surge de maneira indireta, a partir de uma fonte montanhosa que, reelaborada, acaba jorrando em planície. Ítalo Svevo, escritor italiano do século 19, não disse isso com todas as letras, mas é dele o sentido do que se segue: “É fácil evitar a felicidade, o difícil é escapar da dor que isso provoca”. Também é comum que a repetição acabe desvirtuando o sentido. Como acontece com o ditado “quem não tem cão caça como gato”, ou seja, de maneira solitária e sorrateira, e não levando um gato na coleira, a farejar as presas.

O impacto pode ser provocado numa sala de espera. A poesia publicada na revista de grande circulação acaba sendo capturada pela fotografia do celular e levada à rede dos computadores, onde se alastra. Uma sonoridade poética conquista o público e assusta o autor, que estava distraído. Aconteceu comigo. A revista Caras, com 360 mil exemplares por semana, colocou uma foto ilustrando o que eu tinha escrito no final dos anos 60, em destaque no centro da página: “Quero um sorriso que dure uma quadra e dobre a esquina a iluminar-me”.

O verso dormia na única edição do meu livro de estréia, “Outubro”. Foi despertado de súbito, pela tormentosa edição depositada em salões de beleza e consultórios médicos e odontológicos. O poema levantou vôo de maneira irremediável, virando uma espécie de consenso em dezenas de perfis do Orkut e sendo citado em vários blogs e sites. O crédito, dado de maneira minúscula ao pé da página, ficou um pouco de fora, permitindo que a autoria também fosse compartilhada pelos leitores. Foi preciso avisar que o autor existia e que a criação não tinha brotado como cogumelo depois da chuva.

Ainda um dia vamos descobrir o nome do autor da obra-prima que fala de uma rua ladrilhada de diamantes, com um bosque chamado solidão, onde mora um anjo apaixonado. Quem inventou esse ladrão de corações?

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada no caderno Variedades, do Diário Catarinense, no dia 21 de abril de 2009. 2. Imagem desta edição: papéis de carta Roda gigante - (2008) Ilustração original com aplicação de MANDALA, de Juliana Duclós.

Nenhum comentário:

Postar um comentário