1 de julho de 2009

A MORTE SUSPEITA DO HOLOGRAMA


Nei Duclós

Zinter Barf, que morreu recentemente numa rua da capital, talvez seja um holograma criado em 2055 por Terz Boraquio, o grande revolucionário que reinventou esse tipo de criatura quando os clones físicos infestaram o planeta de sucata. Explico melhor: o excesso de escravos robóticos tinha sido gerado pelo esquema do mercado a qualquer custo e preço, como acontecia antigamente com os automóveis. Modelos cada vez mais sofisticados e descartáveis começaram a atulhar cidades e vilas. Houve então uma grande queima de estoque para evitar o caos.

Foi aí que surgiu o gênio ítalo-sérvio de Tersz Boraquio, que criou um tipo de holograma capaz de imitar à perfeição os robôs, fazer exatamente o que se exigia deles sem ocupar nenhum espaço, pois os seres atravessavam paredes e montanhas sem deixar vestígios, como se fossem neutrinos. O grande problema neste ano de 2099 é que os hologramas criaram uma sociedade secreta e estão aos poucos tomando o poder, decidindo o que vamos comer, ganhar e gastar. Isso cheira a teoria da conspiração, mas o fato é que uma dessas invenções acabou morrendo nem plena avenida. Dizem que até saiu sangue. Ou seja, os hologramas encontraram o segredo de virar gente.

Sei que vão me chamar de alarmista e mentiroso, leitor de velhas e manjadas ficções científicas, quando esse tipo de solução narrativa enchia páginas impressas de revistinhas mal afamadas. Mas aprendi que a imaginação, especialmente a descartável e datada, é o mais perigoso dos sinais. A verdade é que não havia registro do cidadão que esteve por horas estendido no chão. A polícia não conseguiu decifrar os códigos que trazia na caixinha preta do cinto. As imagens armazenadas ali também não eram esclarecedoras. Houve a suspeita de que se tratava de um combatente bizarro, desses que cruzam a galáxia em busca de trabalho e aventuras. Mas mesmo na Lua, na estação orbital alfandegária que o poder planetário mantem lá, não foi vislumbrado qualquer pista do sujeito. Sabemos disso porque temos um correspondente lá.

Quem viu que o cara passava mal foi uma criança, que carregava um prosaico balão vermelho e chupava um pirulito tradicional, comprado nesses lojas saudosistas que vivem relançando tralhas alimentícias do passado. O garoto ainda por cima usava um boné, como se estivesse saindo de uma gravura do início do século vinte. Ele começou a gritar quando viu a vítima se dobrar e cair. O que ele viu, contou. Mas parece que o relatório sumiu, pelo menos para nós, da Imprensa Virtual e Solidária. Nossa organização não tem poder para provar a fraude. Em compensação, soubemos de fontes de dentro da burocracia policial que vários veículos passaram por cima do defunto, sem que a carcaça desse qualquer sinal de estar sendo abalroada.

Ou seja, era mesmo um holograma. E como se explica o sangue? Parece que os líderes da organização secreta das novas criaturas inventaram várias artimanhas para se passar por humanos, expedientes muito mais sofisticados do que os antigos andróides. Uma delas é verter sangue por qualquer coisa. Isso daria credibilidade de que são reais. Soubemos de aspirantes a cargos importantes que, nos bastidores, se deixavam “ferir” e pediam ajuda para colocar um curativo no dedo. Isso fazia com que os testes sobre sua autenticidade fossem relaxados.

O fato é que o cara morreu, e verteu sangue. O problema é que a comprovação do tipo de sangue vertido desapareceu. Qual a hipótese mis provável? Mal súbito? Não me façam rir. Um holograma é para sempre e pode ostentar a eterna juventude por séculos. Talvez o doutor Boraquio tenha feito uma programação secreta de providenciar a morte das criaturas antes que eles fizessem como os robôs ou os andróides e se tornassem um incômodo. Previu talvez que poderiam se insubordinar até a insânia de tentar tomar o poder. E fez com que os caras, a certa altura, morressem.

O que acontece quando um holograma morre? Desaparece simplesmente? Negativo. Todos os seus registros estão gravados na Impregnação Total que domina hoje o planeta. Qualquer cidadão devidamente identificado pode acessar essas imagens e recuperar a vida inteira de quem quer que seja. Um holograma, como qualquer um de nós, permanece e talvez até ressuscite, vai saber o que esses técnicos loucos preparam. Quem sabe a nova organização secreta esteja fazendo um teste. No caso de alguém deles morrer, para onde vai o “corpo”?

Um amigo meu foi sugeriu que o cara em questão tenha sido assassinado de longe por um rifle de alta precisão. Argumentei que não existem mais rifles, apenas pixeles mortais, e estes estão armazenados pelo Governo Geral. Ele então esclareceu. Assim como existem lojas de antiguidades, há também casas que vedem armas antigas. Essas podem ser carregadas com cartuchos de ultimas geração, que podem até de matar hologramas à distância.

Como o assunto é de segurança interestelar, o evento foi abafado por uma série de apagões virtuais. Nossa imprensa, sempre atenta, é que soube do caso, pois um dos nossos repórteres estava mendigando perto do acontecimento. O jornalista amealhava alguns créditos de luz verde para tomar uns tragos num cafofo da moda, o Vai Muito da Pessoa Bar. Como se sabe, ninguém mais pode beber bebidas antigas pagando em moeda corrente. É preciso ter créditos corretos para se drogar.

Nosso jornalista estava quase conseguindo, pois havia uma convenção de Antigos Moradores das Ilhas Desaparecidas perto dali e os convencionais queriam se livrar dos créditos verdes, pois voltariam para ZY-Tri9, o planeta do momento, cada vez mais cheio de gente e poluído. Lá, não vale nada o crédito verde. Pois na hora em que se levantava para ir tomar umas birras e umas dose de bourbon no Vai Muito que ele viu o cara ser atingido na barriga. Viu a vítima se curvar e cair, mergulhada em sangue.

Imediatamente o repórter nos acionou, aqui na Central da Imprensa, mas não tivemos mais contato com ele. Identificamos o acidente, mas nada conseguimos de informação. Nosso problema agora não é solucionar o caso, mas resgatar o jornalista, que sumiu. Não foi encontrado no bar nem na sua casa. Um universo tão imenso, infinito e hostil guarda segredos terríveis e um deles é o paradeiro do nosso colega. Aquele que queria beber um pouco e acabou sendo testemunha de um crime.

Quem matou o holograma Zinter Barf e por quê? Essa é uma pergunta que vai ter de esperar. Outra se tornou mais urgente: onde está o repórter Birt Bogar? Mandem flops para a redação.

RETORNO - Imagem desta edição: obra de Edward Hopper, artista lembrado por Renzo Mora no seu cada vez mais imperdível blog. É ou não é o clima do Vai Muito da Pessoa Bar?

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