8 de julho de 2009

PLÁGIO NA TELEVISÃO: FUROS DA DRAMATURGIA


Nei Duclós

Os vazios dramatúrgicos empurram a Globo para plágios sucessivos. Sem criar soluções próprias, o uso excessivo do que deveria ser citação passa a ser simplesmente cópia. Vamos ver porquê.

O problema das novelas e mini-séries da Globo não é porque seus autores, diretores e atores trabalham com caricaturas ou situações repetidas à exaustão. A caricatura, a persona artificial da arte que é uma síntese, referência ou representação de pessoas reais, ou simplesmente existe apenas no território da ficção, faz parte do jogo. A solução dramatúrgica manjada muitas vezes é encantadora, depende de como se faz. O problema dessa gigantesca indústria que existe para veicular anúncios e manter a audiência do monopólio – dar emprego para a classe artística é apenas uma conseqüência, talvez uma seqüela – são os vazios de cada obra. Explico melhor.

A vilã interpretada por Letícia Sabatella, por exemplo, em Caminho das Índias, a novela das nove. Ela se compraz na sacanagem, na manipulação das pessoas, mas isso só existe porque há todo um entorno de personagens e diálogos sofríveis que servem como escada para sua performance. É lastimável a ingenuidade dos outros diante dos lances da bandida. O vazio a que me refiro é o seguinte: não é o impacto da cama-de-gato promovida por ela, não é sua esperteza que está na tela. É, antes, a falsa hegemonia gerada pela fraca intensidade do seu entorno. Os outros praticamente tiram o time de campo, ou criam todas as facilidades para que Letícia faça o estrago.

Ocorre o mesmo num dos casais de Caras & Bocas, a novela das sete. A excessiva credulidade da ex-proprietária de galeria que está grávida do seu amor, o pintor, mas não sabe, e acha que o pai da criança é o mau elemento que vive com ela, serviria para facilitar o desdobramento da trama. Mas como não há preocupação em tratar a personagem com um mínimo de competência, então tudo se faz para que ela caia em todas as armadilhas e continue suspirando de emoção. Deveriam fazer com que ela fosse uma pessoa íntegra, inteligente e uma talentosa profissional do mercado da arte e, portanto, apta para enfrentar as barras da maldade. Mas ela é esvaziada de todo o poder para que o traidor possa agir á vontade. Esse é mais um vazio dramatúrgico. Não existe cacife dos autores para criar algo melhor, então se apela para a obviedade.

O álibi é o slogan “é assim que o povo gosta”. Mas é um álibi furado. Não se trata aqui de condenar a novela brasileira, que, todos sabem, é uma droga. Mas de entender qual a conseqüência dessa série de vazios instalados nos programas. Minha percepção aponta para esse vazio como causa principal dos plágios.

A estréia, nesta terça-feira, de Som e Fúria, a mini-série dirigida por Fernando Meirelles, exibe vazios ainda mais lancinantes. Normalmente, esses folhetins veiculados em altas horas servem para a rede experimentar algumas soluções novas, que depois são usadas até o osso no resto da programação. Seria a fórmula perfeita para renovar, sair da arapuca. Mas isso não acontece.

Som e fúria é tirada de uma peça de Shakespeare, expressão usada mais tarde por William Faulkner para título de um romance famoso. A Globo prefere citar apenas Shakespeare. Ou seja, se Faulkner pode, por que não a Globo? Mas isso não importa. Vale dizer que alguns atores principais são todos marginais ao sistema. Começa por Felipe Camargo, no papel do diretor problemático, papel condizente com sua insubmissão real, já que é uma ator que teve mil problemas e acabou sendo afastado. Volta fazendo auto-crítica no Fantástico (sem o tom de autocrítica, claro, mas de balanço de vida, tão usada na grade, como acontece com os quadros chorosos do Faustão).

Ourtra personalidade é Regina Casé, que estava fora por um tempo e voltou num quadro ótimo no Fantástico e gora faz o papel da esposa de um executivo do teatro. E tem também a Andrea Beltrão, exausta da sua Marilda, caricatura bem sucedida de perua do subúrbio em A Grande Família. Ou Wandi Doratiotto, que usa os mesmos recursos (gestos e tons de fala) a campanha publicitária que faz aqui, dos supermercados Imperatriz. São todos atores outsiders que entram numa experiência que poderia ser inovadora.

Mas eis que o vazio está presente. Mostrar o teatro brasileiro fundado no cânone Shakespeare (a narrativa gira em torno de Hamlet) e não em autores mais presentes e importantes, como Nelson Rodrigues, ou mesmo autores russos, como Tchecov, tão fundamentais na história teatral brasileira, abre espaço para que a trama brinque de produção britânica ou americana. Mirelles diz que quer popularizar Shakespeare e que se baseou numa série canadense sobre o mesmo tema, Slings and Arrows (o álibi da citação). Por que não fez algo próprio? Por que estamos sempre colados nos outros? O que não foi dito, pelo menos não vi, é o plágio escrachado da cultuada e premiada série A sete palmos, em que o defunto reaparece o tempo todo para orientar seu sucessor.

Mas Meirelles é mais competente e sutil. Pode-se esperar algumas surpresas, apesar de ter lançado mão de soluções conhecidas e ter descaracterizado a vida teatral brasileira, que no seu seriado gira em torno do bardo inglês. Mas tem casos mais graves, como o de Walcyr Carrasco e Jorge Fernando, que em Caras & Bocas copiaram descaradamente o final do filme Miss Sunshine, onde uma menina participa de um concurso de miss mirim. Como no filme, ela faz uma performance considerada ousada, fora do padrão infantil, e causa um escândalo. As cenas são idênticas. A diferença é que, na novela, a garota é negra.

O resultado desse rolo todo é a desmoralização da cultura. Quem pinta os quadros de vanguarda em Caras & bocas é o macaco (foto). Atores e atrizes são todos uns desvairados. Enquanto isso, a televisão brasileira, pelo menos as grandes redes, continuam exibindo índice zero de programas culturais.

RETORNO - Posso falar de novela, já que escrevo exaustivamente sobre cinema, principalmente sobre grandes clássicos ocultos. E também posso criticar Fernando Meirelles, já que até agora só elogiei, como pode ser visto aqui e aqui. E televisão tem sido um tema várias vezes analisado neste jornal. Ultimamente eu tinha dado um tempo, mas voltei.

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