6 de julho de 2009

VAMOS EMBORA, ANDAR


Nei Duclós

Minha geração se despede, depois de mais de meio século de brutalidades. Fomos criados pelos sertões de Euclides da Cunha e de Guimarães Rosa, mas vemos na TV o rally dos sertões, inspirado no Paris-Dakar, aquele que cruza o deserto. Rodando a 200 por hora nas estradinhas de terra, os desportistas também andam no deserto. Não há mais ninguém nos sertões. Há o povo, mas isso não conta, é como uma miragem, um cacto. Não passa de poeira aquilo que foi descoberto como tragédia pelo engenheiro-repórter de Canudos, assassinado por um desafeto. E como antropologia mítica e narrativa épica, na arqueologia da linguagem projetada para o futuro, pelo diplomata, enfartado depois de assumir a cadeira de Machado de Assis, seu ídolo, na Academia Brasileira de Letras.

Há emoção no rally dos sertões. Pilôtas que tiveram seu carro incendiado numa curva se abraçam e choram, posando para o ar condoído do casal de apresentadores. São emitidos gritinhos de iuhúú pela adrenalina gerada em tantas aventuras pelo ermo, o país do povo deserdado. Duvido que esses carrões envenenados não matem meia dúzia nas corridas insanas pelo caminho. Mas povo é como esquilo, morre cruzando um brete e nem sequer é filmado pelas câmaras feéricas. Lembro um dia que um dos participantes voou com sua máquina para cima de um telhado de pobre. Isso deve acontecer durante todo o trajeto, mas ninguém fica sabendo.

Mas quem se importa? O rally dos sertões é a celebração da indiferença, a busca de glória a qualquer custo. Diferente daquele outro raid pelo interiorzão brasileiro de 1924 a 1927, a coluna Miguel Costa-Prestes que, segundo um dos seus líderes, Juarez Távora, em suas imprescindíveis memórias (“Uma vida e muitas lutas”) também se opunha ao que tentava salvar, o povo. Era difícil para o pobrerio nos descampados e vilarejos ter de alimentar mil homens e seus milhares de cavalos, em luta contra a presidência de Arthur Bernardes. Não é por nada que não teve apoio popular direto, com algumas exceções, diz Távora. Quando virou mito, foi aclamado, mas pelas populações urbanas, longe das armas e dos cavalos.

Minha geração desperdiçou o tempo tentando mudar o mundo. Deveria ter deixado como estava. Ou então, escutar Hendrix e não contar para ninguém. Ver Godard e se acostumar ao cinema vazio. Escrever e guardar. Pintar para as nuvens, ficar anônimo no litoral. O resto guardaríamos como lembrança que vale a pena. Nat King Cole cantando em espanhol. Frank Sinatra o tempo todo. Andar distraído nas tardes do Rio pelas mãos de Tom Jobim. Amanhecer com João Pacífico, morar no crepúsculo com João Gilberto, anoitecer com Vinícius. Rememorar o tempo em que dançávamos agarradinhos e ninguém cuspia nos fumantes. TV Tupi, TV Excelsior e o Correio da Manhã. Viagens pela Panair do Brasil.

Desperdiçamos o corpo e o tempo lutando por mudanças reais, mas elas não dependem de nós, senão a juventude de hoje não estaria gritando “fora, súcia”. Sempre fomos espectadores do caos que rola pelas esferas, jamais protagonistas. Não lutaríamos em vão contra a hecatombe dos tempos. Seríamos insubmissos, mas ainda líricos. Leríamos a revista O Cruzeiro. E haveria sapateado nos musicais americanos. Repartiríamos o cabelo e ouviríamos guarânias e blues. As agulhas desceriam suavemente sobre os LPs com aquele chiado gostoso antes de os metais e os contrabaixos pontuarem vozes inesquecíveis.

E o melhor: não teríamos saudades. Não sofreríamos com o rally dos sertões. Pois acredito que tudo o que aconteceu conosco foi vingança contra nossa vontade de mudar o mundo. Queríamos o amor puro e verdadeiro, a revolução correta, o governo limpo, o povo alimentado e feliz. Colhemos ruinas de nossa pregação. Tivéssemos deixado quieto, a vingança do cosmo se manifestaria em grandes realizações. Pois tudo existe para nos contrariar.

Todos saberiam quem é Edu Lobo e cantaríamos em coro, em praça pública: vamos embora, andar, que a terra já secou, borandá. Ah, tempo, coração iluminado, me deixa sonhar com o resgate do que perdemos. Minha mãe à espera na calçada. Meu pai voltando da pescaria. Meus irmãos indo para a capital. Nós voltado para as aulas. E lá, no colégio, teríamos ainda a companhia do Gilberto Gick, que completaria 60 anos no ultimo dia 30 de junho, não fosse aquele tiro.

Vamos embora, andar. Missão cumprida, geração que falou alto demais e depois emudeceu. "Vam' borandá. Que é melhor partir lembrando, que ver tudo piorar".

RETORNO - No video do You Tube, que acompanha este texto,Edu Lobo, o maior compositor brasileiro vivo, canta Borandá, de sua lavra, acompanhado pelo Tamba Trio, o som sofisticado de um grupo na época em que tínhamos música popular. E tínhamos música por existiam artistas criados no Brasil Soberano (1930-1964) em luta desarmada contra o nefasto regime de 1964, ainda em vigor.

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