22 de agosto de 2009

O POETA NO EITO


Nei Duclós(*)

Crônicas de Manuel Bandeira revelam o artífice da palavra no embate árduo da sobrevivência

Quatro páginas diárias datilografadas eram o seu limite, o máximo que as unhas de Manuel Bandeira podiam suportar. A enorme quantidade de compromissos, desde as crônicas semanais sobre literatura e artes plásticas, entre 1930 e 1945, até as traduções, os projetos especiais e as colaborações em inúmeras revistas literárias, faziam do tísico e hepático poeta um operário do verbo com encomendas acima de suas forças. Por isso costumava se livrar de alguns encargos, mesmo que fossem melhor remunerados do que outros, que só compensavam pela quantidade de livros depositados gratuitamente na sua mesa.

Havia também o tempo investido em eventos e visitas ao objeto de seus textos, como acontecia nos salões e exposições das artes plásticas. Como eram poucas as obras que valiam a pena serem vistas e comentadas, Bandeira se torturava de ter que falar dos aquarelistas que exigiam atenção, dos diletantes, dos simplesmente picaretas que estavam de olho nos prêmios concedidos todos os anos pelo Ministério da Educação e Saúde do ministro Gustavo Capanema, do governo de Getúlio Vargas. Foi assim que, depois de anos publicando seu rodapé no jornal A Manhã, ele convenceu o poeta Cassiano Ricardo que deveria se livrar dele, no que foi atendido.

Às vezes, precisava lembrar a seus editores que havia contas para pagar e acabava pressionando para que a remuneração pingasse na sua ascética vida de intelectual de espírito livre e de grande coragem e fôlego. Em todas as 478 páginas deste segundo volume das Crônicas Inéditas lançado pela CosacNaify, com organização, posfácio e notas de Júlio Castañon Guimarães, existe a postura exemplar do poeta. Como, por exemplo, a “crueldade” expressa na sua atuação como jurado de concursos literários, em que colocava a meritocracia acima de todas as injunções. Assim se livrava dos que exigiam os prêmios explicitamente ou por vias indiretas. Tinha gente que não respeitava a assinatura por pseudônimo, por exemplo, e entregava o nome verdadeiro, para tentar influenciar, em vão, o resultado.

Eis uma lição para os dias de hoje, em que, dividindo o número de obras pelos dias disponíveis dos jurados, teríamos recordes, como a leitura de sete romances por dia, como às vezes acontece. Como chegar a um denominador comum em tão exíguo prazo? Ou, então, como denuncia determinado diálogo entre dois amigos escritores, em que um confessava ter participado de um concurso em que o outro era jurado. O evento já tinha sido concluído e o autor em questão não fora premiado. A resposta do outro foi: “Mas por que você não me avisou?”

A sinceridade extrema do poeta era fruto do seu enorme conhecimento cultural, da presença de espírito diante da avalanche de obras, da intuição certeira que se decidiu pelos melhores quando os talentos nem eram ainda conhecidos (de Vinicius de Morais a Iberê Camargo). Bandeira fazia justiça com as próprias mãos e usava frequentemente o chamado humour, a graça ferina no lugar da frase anedótica. Dizia coisas mais ou menos assim: “fulano é tão talentoso que tem o poder de estragar a própria obra; o único problema é que o pintor colocou uma jarra de água bem no meio da tela só para estragá-la; o poeta decidiu pintar, mas ele não me convenceu; o modernismo é um novo academismo; este ano o salão está cheio de portinarices,” entre outras preciosidades do sarcasmo e da ironia.

O sabor destas crônicas é que Bandeira revela sua época pelo filtro da inteligência e da sensibilidade. Poderíamos dizer que qualquer tempo é vítima da barbárie e da truculência, e cada momento da vida humana, com vocação para a brutalidade, acaba se salvando graças aos espíritos mais elevados, que mergulham fundo e trazem à tona, tanto para os contemporâneos quanto para os pósteros, as joias que a humanidade produz e nem sempre estão visíveis. É preciso que os grandes mestres façam parte dessa corrente poderosa que define nações e décadas, para que possamos nos orgulhar de sermos humanos.

Só que existem épocas que sobram em realizações e grandes espíritos. Manuel estava rodeado pelo que havia de melhor no mundo, tanto os escritores e artistas de primeiro time, como Mario de Andrade e Guignard, os livreiros e editores, como José Olympio, e participava de acontecimentos de repercussão internacional, já na época da guerra e da Política da Boa Vizinhança, éramos tratados como aliados importantes. Havia, também, a riqueza dos temas que entraram na pauta obrigatória da nação depois da Revolução de 1930, um evento que ele considerava positivo, conforme suas próprias palavras: “A revolução brasileira, ainda quando não tivesse a vantagem, que todos esperavam dela, de sanear o ambiente político de nossa terra, deu alguma satisfação a essas exigências espirituais de renovação (...) Quanta coisa mudou! Positivamente, é o outro lado da Lua. Declaro que estou encantado”.

Sua coluna Impressões Literárias, que publicava no carioca Diário de Notícias, foi a oportunidade de verificar a explosão editorial do país logo depois da revolução, não que o governo fizesse grande coisa, alertava, mas porque a má administração geral acabou beneficiando o preço da matéria-prima, o papel, e assim inúmeros escritores tiveram a chance de chegar até o front do eito do poeta. A tudo ele abordou fora da militância modernista, segundo observação de Julio Castanõn Guimarães.

Sem nenhum tipo de amarra, ele se dava o luxo de propor a Vinicius de Morais que não insistisse muito no verso livre, já que ele poderia ser melhor no esquema tradicional da poesia. E puxava as orelhas de Jorge de Lima, do livro A Túnica Inconsútil, pelo excesso do tom bíblico tradicional, exigindo que o autor voltasse ao equilíbrio de seus lançamentos anteriores. Tanta sinceridade deve ter-lhe dado mais do que uma dor de cabeça. Por isso, desabafou nas suas próprias crônicas, chegando a confessar, a certa altura, que era um poeta menor, o que confunde até hoje seus exegetas, que levaram essa declaração ao pé da letra. Num esforço de reportagem, chegaram a dizer que Bandeira seria o nosso “maior poeta menor”, o que é um primor de contrafação crítica. No dia em que um autor como Bandeira for considerado menor, pode fechar o Brasil para balanço.


Em outro desabafo, ele confessou não entender nada de artes plásticas, o que, desta vez, sim, deve ser levado ao pé da letra. Não que ele desconhecesse o mètier. Mas ele chamava a atenção para o que importava. Pois ele entende é de texto, de palavra, de música do verbo. O poeta não pinta, não desenha, não fotografa, apenas escreve. Mas ali no seu território sagrado, ele é mestre do ofício, e as artes plásticas ou a literatura só têm a ganhar com isso.

Manejando a sua máquina Royal, que exigia esforço no ato de teclar, Bandeira nos deslumbra com sua lucidez e talento. É um Mestre, com todas as letras. Precisamos urgentemente deles. Que voltem do Olimpo e reguem novamente o coração seco da nação, entregue aos assassinos.

RETORNO - 1. (*) Resenha publicada neste sábado, dia 22 de agosto de 2009, no caderno Cultura do Diário Catarinense. 2. Imagens desta edição: a principal mostra Manuel Bandeira na exposição de Portinari, na residência da família Nabuco, no Rio de Janeiro, novembro de 1944 (foto de autoria de Carlos Moscovics, pertencente ao acervo Projeto Portinari e reproduzida no livro); depois vem a capa do lançamento e a foto originalmente publicada na quarta página do Cultura deste sábado, ilustrando minha resenha.

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