25 de outubro de 2009

AS MIL E UMA NOITES DO MILIONÁRIO INDIANO



Sherazade contava histórias para o rei que queria matá-la depois de fazer sexo. Deixava o conto em suspense para continuar no dia seguinte e assim foi adiando sua execução. Quando chegou ao fim da sucessão de contos, pediu clemência, no que foi atendida. Dizem que as Mil e Uma Noites são os degraus da iniciação do budismo. Assim também no filme “Quem quer ser um milionário”, de Danny Boyle, que ganhou 8 Oscars. O protagonista é um contador de histórias, que desfia os passos de sua vida bruta nas favelas indianas, onde começou órfão, passou a ser mendigo e acabou como servidor de chá numa empresa de telemarketing. Seu objetivo é escapar da tortura e da morte numa delegacia policial.

Sherazade fazia parte de um gênero sob suspeita, pois foi a infelidade da esposa que fez o rei vingar-se nas virgens do seu reino, matando-as uma a uma. Assim também aconteceu com Jamal, o garoto que sabia todas as respostas porque em cada uma delas havia a encarnação de uma vivência profunda. Sua performance num programa lotérico de televisão, onde ganhou uma fortuna, que poderia dobrar com a respsota certa da última pergunta, despertou suspeita do organizador do show e dos policiais. É porque ele faz parte dos garotos pobres da Índia, que jamais dizem a verdade, segundo a visão oficial. Por pertencer a um grupo social determinado, está condenado por antecedência, como Sherazade.

Sherazade contou as histórias para poder escapar da morte certa, pois cedo ou tarde seria convocado ao palácio, por ser uma das donzelas da região. Mas acabou se apaixonando pelo rei, com quem teve três filhos. Assim também Jamal, protagonista de uma jornada de encontro ao amor, distante no início, complicado o tempo todo, mas que enfim se consuma porque esse era seu destino, sua chance, sua sorte. A história de amor está imbricada na tragédia social como uma pérola em ostra intragável, escondida no fundo da miséria e do terror. Ela mesmo não acreditava que se encontrariam ainda em vida, mas ele apostava alto na oportunidade que a vida lhe reservava.

Eis o encanto deste filme que arrebatou a multidão e os críticos e levantou todos os prêmios da academia. Os politicamente corretos torceram o nariz, obviamente, pois um filme que acerta na veia exatamente por pertencer a uma linhagem narrativa clássica não poderia emocionar, como realmente emociona, não poderia ser de vanguarda, como realmente é, já que a montagem múltipla embala o encadeamento lógico e previsível, pois fica claro desde o início que este é um conto de fadas moderno, com todos os ingredientes que fazem a festa das exegeses das ciências humanas.

Ver o filme como uma paródia criativa das Mil e Uma Noites ajuda a decifrar a charada do seu sucesso. De vez em quando, um grande filme nos arrebata e torna a vida mais suportável. Quando isso acontece, devemos nos submeter aos desígnios da nossa sorte. Pois muita coisa sinistra passará debaixo da ponte até vir novamente uma obra como esta. Não dê ouvidos ao canto morno das falsas sereias. Este é um belo filme, que merece seu sucesso e que nos empolga por tratar de algo cada vez mais raro: a importância de dizer a verdade quando tudo gira em torno da mentira.

Jamal responde a verdade para os policiais, para o entrevistador, para a namorada, para o irmão, para os bandidos. "E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará", diz a Bíblia (João 8:2). Amém.

RETORNO – 1. Imagem desta edição: Tanvi Ganesh Lonkar (Latika - jovem), cena de “Quem quer ser um milionário?” . 2. Agradeço a Ida Duclós por soprar a idéia das Mil e Uma Noites para entender o filme.

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