15 de outubro de 2009

CANÇÃO DOS ANJOS EXAUSTOS


Nei Duclós

Para Caio Fernando Abreu

Os anjos exaustos do Continente
com plumas molhadas pelo minuano
desertaram os carnívoros exércitos

Levaram no bolso bulas de silêncio
lenços ciganos, mapas pela metade
essências cifradas em livros de latim

Partiram em desordem pelo vento
todos ao mesmo tempo, como potros
Montados em fogo na busca do mar

Despiram o vidro das esporas
arrancaram palavras dos trilhos
cercaram de conchas o paiol

Seguiram o rumo dos rios mansos
os rios alheios ao rumor das tropas
de margens caladas como baionetas

Sentiam sede os anjos exaustos
sede do sal que não amargasse
da água azul que não fosse covardia

Os passos soavam como porcelanas
as asas eram grandes pincéis
os olhos, bruscas mudanças de lua

Assim aportaram nas praias de sangue
engatilharam flores na fronteira
com o nome riscado por punhais

Os anjos exaustos do Continente
negaram mil vezes os velhos heróis
e cobriram com cinzas as vigílias

Afastaram-se das ordens do clarim
dos olhos torcidos como lençóis
dos cavaleiros reduzidos a leões

Trocaram o torpe destino pelo desatino
puseram a prêmio o frágil rosto de cera
gravaram na pedra seu resoluto caminho

Por isso Deus puniu-os com a eternidade
farto do fatídico desperdício que é ver partir
um filho moço, de olhar encharcado de sonho

RETORNO - Imagem desta edição: Caio Fernando Abreu, que tanto conviveu conosco, nas letras, nas ruas, nos livros, pelo tempo afora, até que se foi, cedo demais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário