27 de outubro de 2009

HÁBITOS DE GUERRA


Nei Duclós

Trazemos do berço a tendência para a liberdade. Os hábitos de guerra são adquiridos no entorno da bala perdida. A vocação é o passeio, mas nos fechamos em casa. Queremos conversar, mas é melhor ficar quieto. Assim acontece com os textos. A natureza da crônica é o pássaro no quintal, a memória, as viagens. Mas acabamos abordando o trânsito, a violência, a inflação. Contrariamos assim a essência das coisas, porque nos submetemos ao território conflagrado.

Aprendemos a driblar conflitos nas rotinas. Brigar é fácil , enquanto o cumprimento desinteressado é a exceção. Quando recebemos aceno amigável de desconhecidos, parece que acordamos de um pesadelo. As relações humanas voláteis são geradas pela indústria dos eventos, os casamentos provisórios, as migrações forçadas, a solidão econômica, a impossibilidade do amor. Assim nos transformamos em indiferentes agrupamentos humanos, escravizados pelo ambiente hostil.

A barra pesada gera seu aparente antídoto. Virou moda marginalizar o pessimismo, fazer campanhas do sorriso fácil, relevar a brutalidade, achar que estamos exagerando. Pela necessidade de sobrevivência, transcendemos o olhar diante das estatísticas. Assassinatos em massa durante décadas são tratados como exceções. O roubo generalizado, da casa de luxo ao pequeno comércio, o assalto ao bolso tanto do ambulante quanto do milionário, revelam que o mal se espalhou em rede pelo tecido social, mas é inútil exasperar-se com isso. Está por fora.

O certo seria repetir alguns jargões adotados como animaizinhos de estimação. O clássico é o “não tem nenhuma”, que vem dos anos 60, quando a mocidade resolveu apartar-se do terror cotidiano tentando inventar um mundo acima das vilanias. Hoje medra o “estar de bem com a vida”, como se enxergar com clareza fosse estar de mal com ela. Há ainda os que batem no peito dizendo “amar a Deus”, o que parece livrá-los da obrigatoriedade de amar o próximo. Ou os que “gostam de ler”, como se respirar fosse uma opção.

Chamar a atenção para esses lugares comuns é visto como implicância. Devemos nos comportar dentro da correção vigente. Pois se destoarmos do coro dos contentes, poderemos desmascarar os hábitos de guerra sob a aparência do congraçamento solidário. Isso prejudica os negócios. Tem muita gente faturando com o tiroteio.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Toshiro Mifune.

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