23 de novembro de 2009

O JORNALISMO EDIFICANTE


Todos lembram como surgiu o jornalismo edificante. Com o bordão “isto é uma vergonha”, que de tão repetido, caiu no vazio. Tudo continuou uma vergonha e ficou por isso mesmo. Mas a ditadura precisa desse tom de ninar o Papa, desse lento caminhar ongueiro reportando bufunfas desviadas dos recursos públicos para cacifar a defesa das tartarugas, a importância fundamental da capoeira ou da sustentabilidade do mico leão dourado (se fosse mico leão negão não causava tanto frisson entre os gringos).

A tal sustentabilidade levou ontem Sting e Raoni a um show em São Paulo, onde todos aplaudiram a necessidade de salvar a Amazônia, que continua firme sendo desmatada. Aliás, para isso existem as campanhas, para manter ativa a devastação da selva, pois assim a destruição continua mas o público fica confortado pelas boas intenções das figuras carimbadas.

O tsk tsk tsk permanente de apresentadores e repórteres nos levam sempre para as imagens maquiadas das ruínas. O bairro está morto, sujo, podre, dá para ver em qualquer detalhe. Mas se o morador vestir uma camiseta com mensagem edificante, tudo se ilumina. As pessoas reunidas em frente às câmaras são flagradas mudas naquele instante que antecede a falsa reportagem. A uma ordem, todos então entoam em uníssono alguma coisa para ficar na História, manifestam sua alegria em ser pobre, de estar condenado mas assim mesmo resiste porque é brasileiro e não desiste nunca.

Mas como não se pode mal acostumar “essa gente” (que significa classes despossuídas), então chega a vez dos comentaristas ferozes do jornalismo edificante, os que babam simplesmente na gravata insurgindo-se contra o câncer ou os que usam o tom admoestador e advertinte catequista, que lembram a todos que a democracia é uma concessão que pode ser retirada se não se comportarem direito. Por enquanto vai algumas palmadas-frases, mas daqui a pouco vem chumbo grosso, cuidado.

Tudo isso acontece porque o monopólio não cede, a distribuição de renda é uma campanha publicitária e nada é feito pela nação aos pedaços. Vejam os marmanjos se rebentando no final do jogo, as crianças sendo mortas a tiros em brigas pífias de trânsito, os assassinos hediondos recebendo benefícios da justiça, as cadeias sem condições de higiene nem para porcos. Tudo isso convive ou é fruto de uma política que se arma para a grande disputa do butim federal em 2010, o vale-tudo da desfaçatez e da falta de escrúpulos, quando teremos a liberdade de escolher entre mal encarados mentirosos, corruptos sorridentes, idiotas destemperados e vagabundos fazendo pose de estadistas.

Esse ambiente hostil ao raciocínio, à sensibilidade, à cultura e à inteligência precisa do jornalismo edificante, que é seletivo e invasivo. Eles te olham bem fundo nas fuças e mentem deslavadamente ou expressam abobrinhas inomináveis embaladas no papel celofane da correção absoluta. Nenhuma migalha de realidade. O país afunda com qualquer chuva, os ventos varrem as cidades sem que nunca ninguém pense em como redirecionar os projetos de construção, como implantar políticas públicas de urbanização que leve em conta as novas manifestações da fúria do clima. Tudo fica ao deus dará, como se estivéssemos em terra de ninguém, onde prevalece o improviso e a incúria.

Mas não se desespere. Basta ligar a televisão ou abrir o jornal para ver os articulistas do Bem, os editorialistas do óbvio, as gracinhas dos direitos, os eventos étnicos e outros exemplares da tralha da idiotia que nos domina. Fazem de tudo para você se sentir à vontade enquanto a população consome comida industrial suspeita, eletrodomésticos de última categoria e móveis que se autodestroem no final da prestações. “Perdi tudo” diz a cidadania ferida de morte para seguradores de microfone do jornalismo edificante.

É verdade. Perdemos tudo, principalmente a capacidade de reagir a essa infâmia geral no país sem soberania.

RETORNO – Imagem de hoje, um exemplo de “sustentabilidade”, tirei daqui.

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