7 de novembro de 2009

QUATRO EM CENA

Um padre progressista acusado de pedófilo (Philip Seymour Hoffman), uma freira fundamentalista que mente para descobrir a verdade (Merryl Streep) estão no filme A Dúvida, de John Patrick Shanley. Um velho lutador de luta livre ainda em atividade (Mickey Rourke) e uma stripper que trabalha para sustentar o filho e se mudar para longe (Marisa Tomei) estão em O Lutador , de Darren Aronofsky. Os dois filmes são de 2008 e os quatro atores e atrizes citados concorreram ao Oscar. Junto com Sean Penn, já abordado aqui, que venceu com Milk, é o que de melhor pode o cinema contemporâneo nos oferecer em matéria de interpretação.

Seymour, Streep, Rourke e Tomei são do ramo, ou seja, não fingem, compõem criaturas verossímeis para expressar conflitos, biografias, performances, memórias. Não é uma humanidade admirável o que eles representam, ao contrário. É uma sucessão de tragédias pessoais, manipuladas pela indústria cultural. Reiteram certezas da civilização a qual pertencem, a americana, que jamais relativiza. A América inclui, encara, reporta, mas jamais perdoa ou abre mão do que considera irremovível. Anexa, emociona, seduz, mas jamais deixa de lado o papel que o destino lhe reserva.

Que destino é esse? Os quatro em cena nos dão uma pista. O padre e o lutador são como o escorpião de piada, que pede carona para cruzar o rio e, na outra margem, pica de morte o salvador. “Por que fez isso?” pergunta a consciência. Porque é da minha natureza, responde o escorpião. O padre tenta se justificar num escudo de compaixão, idéias arejadas, preocupação com os alunos, mas de paróquia em paróquia ele continua o mesmo, sempre ao redor de seus objetos de desejo. Seu oposto é a freira que se comporta como uma bruxa, interpretada por esse monstro que é Merryl Streep (basta ameaçar franzir o rosto, olhar ou debruçar-se rapidamente para ela definir seu papel em poucos frames).

A freira tem uma missão e não são as ilusões do amor ou da racionalidade que vão desviar de seu caminho, sua meta. Ela fará qualquer coisa , até seguir seus instintos, para provar que o padre embriagou um garoto e o seduziu, transtornado a mente do aluno. Comporta-se como o olho humano diante das fraquezas dos outros e jamais com a solidariedade religiosa, que no fundo é o que une padres , párocos e arcebispos, todos sob suspeita neste filme sobre a dúvida. A Igreja Católica, ligada ao mundo hispânico, derrotado pelos Estados Unidos no século 19 com a tomada de Cuba, recebe de Hollywood as mais violentas obras e ataques. Não há perdão para a religião do crucificado.

Seymour é um exagero. Mergulha no papel como se fosse a última vez que fará um personagem. Ele se coloca à altura do enfoque: o a pantagruélica refeição de carne crua que ele divide com outros padres é a visão asquerosa de seu comportamento e atitudes. O que ele faz contrasta com a excelência de seus sermões. No fundo, o filme fala que o texto bem articulado pode esconder um caráter duvidoso e, mais importante do que a parábola ou a lição de moral, é a pergunta incisiva, insistente, que vai no osso: “Você embriagou o aluno?”

Mickey Rourke atrapalhou-se na vida quando achou que atuar era dar um sorrisinho cool e virar símbolo sexual, como acontece no execrável “9 e meia semanas de amor”. Ou quando tenta imitar Marlon Brando montando uma motocicleta. Mas em O Lutador ele se supera e traz a gana de um veterano que volta ao centro do ringue. Sua obsessão é a profissão que exerce, levada até o desenlace. Suas tentativas de mudar de rumo são apenas desvios de conduta, pois no fundo não está interessado em reatar com a filha ou formar família com a stripper. Ele quer mesmo é se acabar dando e levando porrada, pois só assim se sente vivo. Fazer o trabalho, cumprir a missão, a meta, como Streep e seu hábito negro. É como disse Nixon filmado no clássico “Corações e mentes”: “O importante é que os pilotos foram lá e cumpriram seu dever” (did the job). O “trabalho” era jogar bombas no Vietnã.

Marisa Tomei é a inteligência que vai no osso da personagem sem se entregar a frescuras. É uma atriz determinada, que encarna de maneira perfeita a profissão que simula o sexo e trata os amigos como clientes. Criou para si uma armadura anti-emoção e é punida por isso. Ela tem o objetivo de saltar fora daquela vida e por isso sacrifica sua chance de ter alguém ao seu lado. É a América envolvida com suas próprias contradições, em que a grana é caçada para a liberdade, mas a liberdade verdadeira, o sentimento , foge dos espíritos que viram pedra.

Quatro grandes profissionais de primeira linha em cena: bom demais para quem vive num ambiente hostil à arte e em que as pessoas ainda insistem em “jogar conversa fora”, talvez a pior expressão do mundo em pedaços.


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