2 de janeiro de 2010

SEGUE A VIAGEM


Nei Duclós

A cada novo livro, a revelação do Don Juan para Carlos Castaneda torna-se mais complexa e profunda. O discípulo amplia a percepção das novas realidades descerradas pelo mestre e revela para o leitor os detalhes ocultos nos outros quatro livros — Erva do Diabo, Uma Estranha Realidade, Viagem a Ixtlan e Porta para o Infinito, que em edições sucessivas atingem centenas de milhares de pessoas em todo o mundo.

A novidade neste livro é a ausência de Don Juan e Don Genaro, os dois bruxos que, juntos, nas obras anteriores de Castaneda, introduziram nove pessoas na terrível luta pelo conhecimento. Entretanto, a influência dos mestres continua poderosa e se reflete na tumultuada convivência entre os discípulos, que aqui pela primeira vez se vêem obrigados a contar com suas próprias forças para cruzar umbrais cada vez mais apavorantes.

Em "O Segundo Círculo do Poder" a armadilha preparada por Don Juan para colocar os discípulos à prova — principalmente Castaneda — é definitivamente mortal. Soledad, por exemplo — a velha que modifica seu corpo através dos ensinamentos de Don Juan —, precisa matar Castaneda para recuperar sua integridade espiritual. Essa personagem é exatamente o oposto de "A Gorda", a discípula que foi mais feliz nesta luta feroz pela salvação e está encarregada de transmitir as últimas revelações de Don Juan. Além delas, existem as "irmãzinhas" Josefina, Rosa e Lídia — também empenhadas em roubar a força espiritual de Castaneda — e os discípulos Nestor, Benigno, Pablito e Elígio, que apenas aparecem de passagem neste livro, mais voltado para o relacionamento do autor com as feiticeiras.

Força poética — Não vem ao caso discutir se são reais as histórias contadas por esse misterioso antropólogo do qual não se conhecem fotografias e que teria mudado sua vida depois de quinze anos em contato com a iniciação nos desertos do México. Importa penetrar na natureza dessa revelação, a primeira baseada nas esquecidas culturas indígenas do Novo Mundo. Sabe-se que uma revelação sempre procura a salvação dos homens através da mudança da percepção individual. O "ver o mundo com outros olhos" é fundamental para o surgimento de um novo relacionamento com a realidade e, em conseqüência, com a salvação. A imortalidade do corpo e do espírito — conseguida através de um esforço onde predominam o ascetismo e uma nova moral — é comum a todas as iniciações, de Krishna a Cristo.

Mas pode-se levar a sério um autor já acusado de abusar da credulidade das pessoas para enriquecer e que, segundo as últimas informações, não pas­saria de um executivo americano com extraordinária imaginação e cultura? Se nos ativermos aos textos publicados até agora, sem levar em consideração as acusações — muitas vezes fruto da pressa e do preconceito —, descobrimos, em primeiro lugar, um escritor de grande força poética, que pela primeira vez trata desses assuntos sem o ranço característico do gênero. Em segundo lugar, nota-se a atualidade da revelação, que perfeitamente pode ser identificada com a mudança dos valores de­sencadeada na década passada, já que os ensinamentos de Don Juan implicam o uso — eventual — das drogas e o contato com a natureza. E, em terceiro lugar, há a originalidade dos ensinamentos — que possuem uma linguagem própria, desvinculada dos conceitos tra­dicionais de alma, mundo, céu ou inferno.

Visto isso, podemos separar os cinco livros de Castaneda em duas fases. A primeira — quando o discípulo tateia cegamente com sua razão no novo mundo que Don Juan tenta lhe mostrar — encontra-se nos dois primeiros livros, que refletem as dificuldades do autor: eles são longos, confusos, detalhistas demais, embora nem por isso menos interessantes.

Tarefa de guerreiro - A partir de "Viagem a Ixtlan" — uma obra-prima do ponto de vista literário e filosófico —, Castaneda mostra-se de uma extraordinária clareza e elegância, contando a desintegração violenta de sua identidade de homem civilizado e super-racional. Em "Porta para o Infinito" — e agora neste "Segundo Círculo do Poder" —, a revelação toma um novo impulso e vai além do que qualquer leitor poderia ter imaginado. Ela só faz sentido, entretanto, para quem seguiu a viagem até aqui, já que conta com uma série de conceitos exaustivamente explicados nos outros livros. Ainda assim a leitura é clara, mesmo para quem está cru diante da viagem, pois Castaneda é um autor extremamente dedicado. E não é para menos: escrever é sua "tarefa de guerreiro", a sua atividade principal nesta vida antes de partir definitivamente para o nagual, aquele lugar desconhecido que existe "diante dos nossos olhos" mas que não podemos ver — a não ser em ocasiões excepcionais —, devido a séculos de opressão.

O acesso ao poder ganha com esses livros uma dimensão não devidamente analisada pelas suas implicações — inclusive políticas. Por enquanto, é muito cedo para avaliar toda a verdade dessa obra em série que ainda contará, pelo menos, com mais dois livros. Um falando sobre o contato de Castaneda com Nestor, Benigno e Pablito, e outro — é inevitável — sobre o impacto psicológico desta revelação na sociedade. Castaneda levará sua tarefa até o fim: afinal, ele se tornou um guerreiro e seu mestre o espera, de corpo inteiro, em algum lugar da vastidão, para continuar a viagem infinita.

O SEGUNDO CÍRCULO DO PODER, de Carlos Castaneda; Record; 238 páginas; 120 cruzeiros.

RETORNO - Resenha publicada na revista Veja número 532 em 15 de novembro de 1978. A ilustração é a original da revista.

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