25 de fevereiro de 2010

QUANDO OUVIR É VER E VER É NÃO ENXERGAR



A diferença entre os dois filmes – A Cor do Paraíso (1999), de Majid Majidi, e A Mulher Invisível (2009), de Cláudio Torres, é brutal. Mas quando se trata de cinema, tudo conflui para percepções afins.

Em A Cor do Paraíso, a natureza pode ser lida pelo alfabeto Braille. O menino Muhammad (interpretado por Mohsen Ramezani, que é cego) tenta enxergar o que o cerca por meio da lógica oferecida por seqüências de eventos: folhas mortas, galhos, sons de pássaros, água corrente, barro. O tato ajuda a ouvir, que o leva a ver, à sua maneira. Mas ele está cercado pela cegueira dos que enxergam. Do pai, que se sente injustiçado pela vida e quer se livrar dele. Do professor da escola do interior que fica pasmo diante da sua capacidade de leitura das lições de aula. Dos colegas das irmãs, que se debruçam para tentar decifrar o segredo de sua alfabetização, aprendida numa escola especial.

O pai se assusta com o que ouve, porque não tenta descobrir o sentido oculto das manifestações só percebidas por outros sentidos. Preso pelo que vê de maneira tão limitada por sua dor e preconceito, o pai se transforma num personagem trágico, que encontra o mesmo desfecho de Zampano (interpretado por Anthony Quinn) de La Strada, de Fellini, o saltimbanco que ao perder o amor da sua vida urra de remorso na praia deserta.

O que está próximo demais não pode ser percebido. É preciso distância para experimentar a fundura da falta, entender a natureza da dor, avaliar a intensidade do amor. A avó e as duas irmãs, que vivem longe do menino durante o ano letivo, redescobrem o prazer da fraternidade no reencontro, assim como a avó, agricultora que extrai das flores a cor necessária para o tapete consagrado ao seu Deus. Todos fazem parte do mundo que o menino impedido de ver enxerga com sua concentração e devoção.

É cinema total. Nós vemos o que há na tela, mas o protagonista menino abre uma janela maior para o que ele ouve e toca. Aprendemos a enxergar o que ele não percebe pelos olhos, mas nos mostra com seu talento. O filme assim é sobre duas camadas superpostas de cinema: o visível e o oculto, ambos explícitos. A tragédia que se abate sobre tudo tem a ver com a incapacidade do protagonista-chave, o pai, de acumular essas percepções aparentemente dispersas. Ele se tortura com o fato de ter um filho cego, e assim se fecha para as chances da própria redenção.

Já em A Mulher Invisível, de Cláudio Torres (diretor do excelente Redentor) ocorre ao contrário. O protagonista enxerga demais: a mulher ideal, uma visão não compartilhada com ninguém. No fundo está cego para a própria loucura, pois acaba de sair de pesada desilusão amorosa intensificada pelo fim do casamento. Ele se refugia no invisível para torná-lo real. Entrega-se ao que vê e não decifra o que, para os outros, está oculto, mas explícito: uma presença virtual com força física, pois interfere nos gestos do protagonista (Selton Mello, excelente aqui).

O que nós vemos é uma exceção, e que só o amante transtornado enxerga, uma criatura não enquadrada na realidade convencional. Em tese, ela faz parte do mundo dos desejos, como querem os Rosacruzes, ou do imaginário. Pedro (Selton Mello) e Amanda (Luana Piovani) reconhecem que Amanda não existe. Ao compartilhar com a mulher ideal o que enxerga, e que para os outros não é visto, ele encontrou uma forma de fazer valer sua visão seletiva. Está preso a ela, como o pai de A Cor do Paraíso. E isso é sua danação.

Mesmo quando faz as pazes com a amada real (que por um tempo foi confundida com outra alucinação), ele traz como encosto a gostosa que inventou para se compensar. Pior para o pai do filme iraniano, que perde a noiva, a mãe e o filho, numa sucessão de castigos por seus erros. Pois, se o filme brasileiro encontra saída para o desespero, por meio do convívio com a loucura, no iraniano, nada tem volta. Ficam apenas as imagens, belíssimas, de uma saga partida.

RETORNO - Imagens desta edição: na foto de cima, o premiado ator Mohsen Ramezani; na segunda foto, Selton Mello com as "irmãs" Maria Manoela e Fernanda Torres. Luana (excelente, quando bem dirigia)? Ela tem um blog. Vai lá.

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