3 de julho de 2010

OFF SIDE, A ELIPSE EM JAFAR PANAHI


Elipse é um recurso cinematográfico em que a ação oculta é sugerida pelo que vemos na tela (*). Em Off Side, de Jafar Panahi, filme ganhador do Urso de Prata no Festival de Berlim em 2006, essa ação oculta é o jogo decisivo entre Irã e Bahrein pelas eliminatórias para a Copa da Alemanha, que seria realizada naquele ano . O que vemos na tela é um grupo de mulheres tentando entrar no estádio, sendo detidas e acompanhando os lances numa longa trajetória até a prisão, que afinal não acontece porque a explosão popular de alegria pela classificação não deixa.

O filme, dirigido pelo cineasta que foi preso pelo ditador do Irã, amicíssimo do governo brasileiro, e que foi solto depois de pagar 160 mil euros, é um primor e jamais será exibido nas televisões brasileiras, mais preocupados em imbecilizar a população com blockbusters e produções americanas de quinta categoria. Quem acompanha futebol sabe o que significa off side, o impedimento de quem fica sozinho atrás da linha de zagueiros adversários esperando a bola para fazer um gol covarde. Foi o que aconteceu na copa da África do Sul, com Tosco Tevez, o bobalhão argentino, que estava no off side mas ganhou o aval da arbitragem corrupta da Fifa no jogo contra os mexicanos, que ainda vão pegar todos eles “na saída”, como se dizia nos tempos do colégio.

Pois as mulheres do Irã estão impedidas de ver o jogo porque são mulheres e devem ser preservadas dos insultos e possíveis estupros na companhia de dezenas de milhares de homens, conforme suspeita a moral da ditadura iraniana. Mas elas tentam driblar a fiscalização e acabam todas num redil, guardadas por um soldado bronco vindo do interior e que cumpre compulsoriamente o serviço militar, louco de medo de cometer alguma transgressão e ter de ficar para sempre vestindo a farda, sem poder voltar para cuidar do seu gado e de sua família.

O cinema iraniano segue os protagonistas e dá voz a seus diálogos de maneira ininterrupta, como vemos em outros cineastas desse país, como o festejado Abas Kiarostami, entre outros. Dizem que é pelos poucos recursos, mas não acredito que seja só por isso. Edição, com os recursos atuais, é fácil de fazer e não está tão caro como antes. O que há é sinceridade, vontade de cumprir à risca a máxima de Godard, de que o cinema é a verdade 24 vezes por segundo (conceito tirado da época do celulóide). Panahi filma em tempo real a saga das garotas para ver seus ídolos do futebol (algumas também jogam) e torcer pelo seu país.

O sentimento de pertença, que aqui no Brasil explode nas vitórias e implode nas derrotas, é trabalhado neste filme com amor e respeito. Não há dúvidas sobre a legitimidade desse sentimento, desse patriotismo explícito, que é representado pela multidão indo para o estádio e depois saindo para festejar e dançar. A comemoração inclusive serve para libertar as prisioneiras de dentro da van que as levava para o cárcere. Metáfora da liberdade sendo gerada pela festa da nacionalidade, pela alegria de fazer parte de um país. Terra adorada, salve salve: aqui virou deboche, lá é luta a favor da população e contra a ditadura que enche o saco do mundo com o aval do governo brasileiro.

Panhi estava impedido, preso, porque foi acusado de fazer um filme sobre a corrupção eleitoral no Irã, evento trágico com protestos de muitos mortos e cenas tremendas de violência e repressão. O jogo decisivo, no filme, estava impedido de ser visto e alguns dos seus lances faiscavam por entre as grades, na tela da televisão do bar vislumbrado da van, pelo rádio com antena defeituosa. Os soldados estavam impedidos de deixarem as prisioneiras escapar. Tudo estava contra o cinema: a censura de imagens e de comportamento e a falta completa de diálogo com os poderes. Mas Panahi fez um filme magnífico com tão poucos elementos.

O final, em que a garota queima sete fogos em memórias dos torcedores mortos no passado num jogo entre Irã e Japão, ao som de música nacional do Irã, provoca aquela emoção rara quando vemos uma grande obra. Estamos impedidos de termos um país decente porque os ditadores se abraçam e nos sufocam. Resta-nos a luta pela livre expressão, nesse ninho de cobras que são todos os tipos de mídias, em que o insulto substitui a razão e o deboche impõe o obscurantismo até o último suspiro.

RETORNO – 1. (*) Quem me chamou a atenção para a elipse no cinema foi Tabajara Ruas, que é do ramo, já que escreveu e dirigiu vários filmes. O romancista e cineasta Taba é um dos quadros do cinema formado nas gloriosas matinês dos anos 50, quando chamávamos John Ford de tche loco, pois nem sabíamos da existência da palavra cult ou clássico. 2. Imagem desta edição: cena de Off Side, de Jafar Panahi. Quando crianças, não dizíamos impedimento, dizíamos off side. O ttulo do filme foi traduzido para "Fora do Jogo". Mas o off side faz parte do jogo, é uma censura a uma jogada ilegal. É o cinema apitando falta contra a política, nesta obra maior.

Nenhum comentário:

Postar um comentário