3 de agosto de 2010

ESPÍRITO PÚBLICO


Nei Duclós (*)

É uma vocação, idêntica ao dom de tocar harpa. Precisa de ambiente favorável, senão o talento pode sumir, ou se atrofiar, como acontece com músicos em potencial feridos de morte pela avalanche do baticum. Para o futuro Mozart, é uma atrocidade ser criado num país de berradores profissionais e de caixas de som criminosamente gigantescas.

Ocorre o mesmo com os pendores para o espírito público. Servir o próximo, fazer o bem, depende da existência de um sistema solidário sólido, formatado ao longo de gerações, que sobrevive aos governos na forma de paradigma e é admirado e querido como um penhasco à beira mar. Dedicar a vida à população, que se aproxima em busca de atendimento e depende do apoio fundamental para tocar a vida madrasta, é algo que pode desaparecer entre nós. Principalmente quando vemos a privatização crescente de todos os serviços essenciais e o abandono de hospitais modelos ou de escolas que formaram gênios.

O que mais invoca é ver os atuais estadistas de estádio, formados no colégio gratuito, salvos pelos médicos de plantão mal remunerados no momento do perigo, lutar para o fim dessa obra secular, criada junto com o Brasil, país que acabou sendo jogado na vala comum. Cresci vendo ferroviários dignos que se aposentavam, a passear junto a famílias numerosas, nos domingos nas praças, onde era possível o mínimo convívio social. Fui aluno de professoras instaladas com segurança em casas compradas nos programas habitacionais decanos. Fui amparado nos acidentes e moléstias sem ter de entregar o salário para jovens ou veteranos doutores dedicados à cura do sofrimento alheio. E sou filho de funcionária pública, que ao ir embora foi homenageada por moradores distantes, que andaram quilômetros levando flores dos seus jardins.

É obrigação de todos, como retribuição básica, reivindicar a manutenção do que sobrou e a reinstalação do que foi destruído. Nesta época eleitoral, em que as palavras saúde e educação rolam pelas bocas famintas de butim em campanhas suspeitas, é trágico saber que se faz cada vez menos pelas nossas necessidades. Fica tudo nas intenções de voto, para desaguar na tradicional decepção pós-urna.

Somos como bichos criados em cativeiro, que em vez da liberdade proporcionada pelo espírito público, compartilham o mesmo destino do matadouro.


RETORNO - 1. (*)Crônica publicada nesta terça-feira, dia 3 de agosto de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Ilustração de Juliana Duclós.

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