30 de novembro de 2010

DISTORÇÕES


Nei Duclós (*)

A longevidade costuma gerar uma lucidez tão intensa que parece ilusão. Tenho plena certeza, e posso estar enganado, que as pessoas pararam de se comportar como plateia a partir do teatro de agressão dos anos 1960. Hoje, os shows não são mais de estrelas para fãs, mas de uma comemoração entre celebridades em qualquer lugar do espetáculo.

Vemos distorções por todo lado, como no aprendizado. Ninguém mais aprende, pois só tem a ensinar. Há um arsenal poderoso para que uma argumentação seja demolida sem dó. Um exemplo é virar contra o interlocutor suas próprias provas. Outro é não escutar nada do que ele fala. E mais um é insistir pelos séculos afora na mesma tecla que contraria o que foi dito.

A cultura da autoajuda contempla seus aprendizes com muitos instrumentos para viabilizar essa insânia. Hoje qualquer grande pensador está sujeito a ser reduzido a pó pelos diluidores de conceitos por meio de frases pífias que posam de verdades absolutas, já que ostentam no final o nome de seus falsos autores. Einstein, Quintana, Ghandi ou Schopenhauer, além do massacre de tudo o que Jesus disse, pontuam as mídias sociais como uma avalanche bem armada de absurdos. Avesso aos livros, seus arautos fazem parte daquela plateia que virou palco e que gosta de negar todas as evidências da sabedoria clássica em favor de tiradas espertas.

Mas isso é ser irascível e chato, costumam dizer. Pois se há um consenso sobre as pessoas, esse é o perfil de cada idade. Quem cruzou a curva da Boa Esperança é tratado aos pontapés de várias formas. Ou pela falsa admiração (aquela que aguarda um tropeço para cair em cima), ou pelo tratamento póstumo, que é a morte em vida. Virar verbo do passado enquanto se está na ativa é também uma forma de manter as distorções, já que a longevidade alerta para as barbaridades que se cometem com as palavras.

O que mais incomoda é saber que o esforço de uma vida não valeu nada e os lugares comuns voltaram com força. Não adiantaram décadas de deboche contra as falsidades da língua ou dos pensamentos toscos e ultrapassados. Eles imperam, beneficiados pela multiplicação das vozes. Começo a entender a história da torre de Babel, sem querer entrar no esquema da antiguidade impaciente.

RETORNO - 1. Imagem desta ediçao: Torre de Babel, de Breughel 2. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 30 de novembro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

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