28 de abril de 2011

EM BUSCA DO CÂNONE


Nei Duclós

Só para implicar, costumo dizer que a verdadeira citação é aquela feita de memória, e que a ipsis litteris não passa de plágio. Não é uma afirmação totalmente verdadeira, pois o filtro da mente pode acabar com a frase original. Mas a frase funciona. Serve para evitar a pior ameaça quando se fala de autores e livros: o aborrecimento. Porque nada mais chato do que escutar, sílaba a sílaba, o que foi dito por uma celebridade. Ou aturar a lista alheia dos livros favoritos feita para fazer pose. Nossa imagem depende das leituras que ostentamos, pelo menos é assim que parece na indústria do espetáculo.

Também isso não é de todo verdade, pois o que gostamos de fato costuma coincidir com o que é destacado normalmente em todas as seleções. Ter entre os favoritos Borges, Conrad, Carpentier, Proust, Rosa, Drummond, Cabral, Bandeira não é privilégio de ninguém. Mas o cânone de cada um obedece à personalização de nossa abordagem, à maneira como tomamos conhecimento de livros fundamentais. O acervo real é o que somamos à nossa existência, nessa confluência estranha entre o épico e o prosaico, o transcendente e o pagão, o lógico e o absurdo.

Jean-Luc Godard é mestre em mostrar essa junção de opostos quando coloca grandes autores na fala de pessoas que estão no banheiro escovando os dentes ou em frente a uma máquina de jogar, como ele faz magistralmente no seu recente Socialismo. Mas não estamos aqui para falar de cinema, apesar de Godard ser um autor de colagens clássicas e modernas em oposição à leitura confortável dos best-sellers. “Cheguei e vou dar trabalho”, a máxima do sambista Moreira Silva, serve tanto para Godard quanto para nós, que estamos em busca de um cânone literário.

Para continuar implicando e aborrecer apenas os de má-fé ou excessivamente ingênuos (que se deixam levar por difamações), escolho Monteiro Lobato como meu escritor brasileiro predileto. De Reinações de Narizinho à Chave do Tamanho, de O Comprador de Fazendas à Paranóia ou Mistificação?, Lobato é o escritor maior, eternamente perseguido. Só sua iniciação ao mundo grego antigo já o justificaria como alguém que radicalizou no ofício. Mas Lobato é apenas um. Para não me estender na lista, destaco Joseph Conrad de Lord Jim traduzido por Mário Quintana. Sim, precisa ser o Quintana, senão não funciona (já tentei ler outra tradução, não colou). Mas Conrad sobra: Coração das Trevas, Agente Secreto etc. são uma interminável coleção de maravilhas.

Jorge Luis Borges nos encanta porque tem o visgo dos narradores que fundaram nações e a transgressão de uma vanguarda fora de moda. Ele se alimenta do bizarro sem se entregar a maluquices e compõe uma obra que mostra o caminho (e nem sei porque escrevem tão mal se temos Borges como parâmetro). Borges é um dos poucos autores que releio.

Há Os Passos Perdidos, de Alejo Carpentier, que é a reinvenção do romance, quando o autor mergulha na sua origem para perdê-la, e volta ao mundo real para desmascará-lo. Literatura é maneira que temos de ver direito pelo lado avesso. É uma viagem ao mundo do espelho quando descobrimos, abismados, que lá tudo faz sentido. O lado de cá então adquire sua verdadeira essência: a falta do Absoluto, a morte certa. Literatura é a certeza na vida eterna, que nos leva à paz do espírito.

Não a paz dos cemitérios, mas a do coração habitado. Aprendemos a amar primeiro nos livros. Depois, com as páginas abertas ao lado, damos o primeiro beijo, forçando o olhar para ver se estamos fazendo direito. Esse é o amor verdadeiro.


RETORNO - (*) Artigo publicado originalmente no Jornal Opção.

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