6 de maio de 2011

LONDON RIVER: MISTÉRIO DE UM AMOR DE TRANSGRESSÃO


Para os marinheiros mercantes, o Tâmisa sempre foi o London River. Essa é uma denominação de quem vem de fora, de quem chega na capital inglesa. É uma percepção de viajantes, dos migrantes que aportam em Londres, que tanto podem ser muçulmanos da África, quanto cidadãos britânicos que vivem fora da grande cidade. Eles enxergam outra realidade urbana, longe dos monumentos e dos cartões postais. Habitam bairros contaminados pela complexa e caótica sociedade predatória, onde a sobrevivência é um jogo bruto de mobilidade, pequenos comércios, poluição visual e sentimento de desamparo.

Há um natural desenraizamento nessa situação precária, escassa, provisória e datada. Pessoas que chegam de fora continuam viajando, agora pelas ruas de tráfego intenso, em passarelas onde as paredes exibem rostos de desaparecidos. Viver nos fundos de um mercadinho tocado por um árabe ou passar alguns dias num hotel do subúrbio, caro para qualquer um que não esteja estabelecido como turista ou visitante rico, é se deparar com as entranhas da sociedade, dividida em classes e violenta. Esse ambiente é que alimenta tanto os que vão engrossar as fileiras do estado nas intervenções em países remotos como o Iraque, ou os insurgentes que explodem ônibus e metrô. A guerra está implícita no caos urbano.

É uma situação de guerra – os atentados em Londres em 2005 contra a intervenção britânica no Iraque – que reúne personagens desiguais em London River (Caminhos Cruzados, 2009), do francês Rachid Bouchareb . De família argelina, ele é também diretor dos excelentes Dias de Glória (2006, sobre a participação argelina na II Guerra) e Foras da Lei (2010, mural histórico e ficcional sobre a os anos que precederam a independência da Argélia, filme indicado para Oscar de melhor filme estrangeiro este ano). Sua abordagem é sobre uma transgressão – o amor – entre pessoas díspares (o migrante africano, negro e muçulmano, e a mulher, branca, britânica e protestante). E de como essa relação abriu os olhos dos pais, até então ausentes, que representam a terra (ambos trabalham com plantas) marginalizada pela civilização que devora os filhos.

O conflito entre diferenças étnicas, religiosas ou políticas, que desencadeia o drama, não está em primeiro plano e sim esse despertar que a aproximação familiar experimenta na dolorosa peregrinação em busca do casal desaparecido depois dos atentados. A religiosidade e o trato com a natureza aproxima a identidade do pai do africano (Sotigui Kouyaté, soberbo, o ator do diretor teatral britânico Peter Brook por 20 anos, nascido em Mali, e que morreu aos 75 anos depois das filmagens) e da mãe da garota inglesa (Brenda Blethyn, numa sofisticada interpretação que transparece a caricatura, mas é pura performance de quem domina plenamente o ofício). Os dois se descobrem enredados na mesma armadilha, e partem de suas diferenças para diversas sintonias, que deságuam numa despedida antológica.

O filme trabalha intensamente a elipse, o recurso de colocar o miolo do drama fora do quadro, do que vemos na tela. Sabemos apenas que o casal existe, mora junto e comprou passagens para Paris. O pai, que abandonou o filho quando este tinha seis anos, desconhece completamente a criatura que vai buscar, a pedido da ex-esposa, que ficou na Africa. A mãe, que mantinha uma relação distante e indiferente com a filha, nada sabia de sua vida de estudante na capital. Ambos acabam no apartamento do casal, a compartilhar objetos deixados pela vida em comum. Essas pistas – as fotos, o instrumento musical antigo, as roupas, os móveis, os livros - são a única coisa que resta de famílias destroçadas por uma sociedade hostil e um mundo em guerra permanente.

O africano que queria preservar o olmo desiste de sua luta ambiental e a mulher que gosta de jardinagem tenta tirar algo mais do chão seco e pedregoso. Inútil esforço. O filme é fiel à brutalidade da época e nos leva para a frente desse muro que foi interposto entre as pessoas. Já sabemos disso, nós, os habitantes do mesmo front. Não precisaríamos do cinema para tanto. Mas com a Sétima Arte podemos imaginar que algo mudaria radicalmente se as pessoas, em vez da violência, se entregassem a outra transgressão, o amor, pautado pela espiritualidade, religiosa ou não, que está firmemente ancorada nas linguagens canônicas.

Tanto os livros sagrados quanto as conversas em tempos de paz tem esse poder. É quando exercemos rituais de orações ou sentamos na calçada a compartilhar uma fruta e rimos do Mal que nos fizeram. É a chance que temos de continuar vivos, de cruzar o rio do desespero e os limites de nossas vidas, para chegarmos intactos, ainda humanos, num porto amigável e não mais dilacerado pelo ódio e a vingança.


RETORNO - Imagem desta edição: Sotigui Kouyaté e Brenda Blethyn em cena de London River.

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