23 de janeiro de 2012

A EXECUÇÃO


Nei Duclós

Temos uma boa biblioteca em casa, mais ou menos organizada. De vez em quando descubro algum volume valioso, pois são muitas as fontes do acervo. Meus filhos às vezes compram em sebos e deixam por aqui algum volume, como é o caso de Obras Primas do Conto Russo, da Martins Editora, uma edição da época do Brasil soberano (por coincidência, 1964, antes naturalmente, do evento sinistro daquele ano) , quando éramos uma nação e não existiam multidões aglomeradas para pegar um autógrafo de alguma mentalidade miserável que compila criações alheias, como ocorre hoje.

Além dos célebres Gorki, Tolstoi e Puchkin, há logo no início uma narrativa notável de um memorialista, Andrei T. Bolotov, considerado uma das referências para entendermos a Rússia do século 18. Seus trabalhos foram escritos entre 1789 e 1816. O texto não chega a ser um conto, mas foi escolhido para dar uma coerência à seleta, pois se trata de um fundador da poderosa narrativa que no século 19 chegou ao esplendor na Rússia. Aliás, quase tudo chegou ao seu apogeu naquela época. Do século 20 para cá, só temos decadência. Ou alguém duvida que o grande prestígio alcançado em sua terra pelos escritores russos tem a ver com o consumo em massa do voyeursmo televisivo, em que milhões ficam olhando as baixarias de algumas mentes doentias?

Não que naquele tempo não houvesse barbárie. Sabemos que sobrava. A diferença é que a literatura, os narradores, os talentos que se manifestavam e são considerados inigualáveis não faziam parte dela. Bolotov conta o episódio de uma execução em praça pública do malfeitor célebre, Pugatchev, rebelde da época da Imperatriz Catarina que foi condenado à morte depois de liderar insurreições contra os nobres e cometer vários crimes. Bolotov é levado para o centro dos acontecimentos por um amigo policial que o coloca de frente ao patíbulo.

O que impressiona, nesse espetáculo sinistro, narrado com maestria pelo autor, é que não apenas o bandido enfrenta o carrasco, mas todo o seu entorno. O palco fica tomado de pessoas que são chegadas a ele. É como se na execução de um traficante todos os seus asseclas, advogados, parceiros e cúmplices enfrentassem a mesma pena. Bolotov conta que a plataforma onde se daria a execução ficou coalhada de carrascos. O início dos procedimentos foi uma longa arenga dos executores, a cargo de um representante do Senado, pois a Imperatriz terceirizou o julgamento para a Câmara Alta.

Depois da leitura da pena, foi dada a ordem do assassinato oficial. Todos seriam mortos no mesmo instante em que descesse o machado sobre o líder dos bandidos, que seria primeiro esquartejado para que partes do seu corpo fossem queimadas em praças diversas, para servir de exemplo. Mas talvez subornado por pessoas influentes, o carrasco simplesmente cortou a cabeça do meliante, desobedecendo assim a ordem do esquartejamento, o que provocou a ira dos algozes. Mas o fato é que, rolando a cabeça do chefe, o mesmo aconteceu com seus asseclas.

Impressionante. Que brutalidade. Só a literatura para trazer essa cena viva de volta. No Brasil temos coisa pior, aqui as execuções são feitas fora da lei, mas a maioria dos escritores não está à altura do momento.

RETORNO – 1. Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Andrei Bolotov. 3. Perfil de Bolotov e o conto A Execução Capital de Pugatchev aqui.

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