19 de janeiro de 2012

WAR HORSE: A MEMÓRIA, EM STEVEN SPIELBERG


Nei Duclós

A cena mais importante do novo filme de Steven Spielberg, War Horse (2011), é quando o soldado, de olhos vendados por ter se ferido com o gás da I Grande Guerra, identifica seu cavalo por alguns sinais particulares, que ele tem de memória. Esses sinais – quatro patas brancas e uma mancha da mesma cor na testa – estavam ocultos pela lama e o sangue, já que o animal fora resgatado de uma armadilha de arame farpado no território de onde ninguém saía vivo, o que fica entre duas trincheiras inimigas.

A memória do soldado provisoriamente cego (sem o sentido fundamental do cinema, portanto) salva o cavalo do extermínio, pois seria sacrificado por estar com a perna ferida com ameaça de tétano. Ter encontrado quem o criou no interior da América sensibiliza os matadores, a equipe médica no front. A memória substitui os olhos: esse é o filme que passa dentro de nós. É o que conta.

Por sua vez, o filme é uma antologia memorável do cinema. Nele estão representados obras inesquecíveis de grandes cineastas, desde David Lean – o paradigma de Spielberg desde sua adolescência,quando viu Lawrence da Arabia e decidiu ser cineasta – passando por Tony Richardson que filmou magistralmente em 1968 A Carga da Brigada Ligeira (episódio que é uma das âncoras de War Horse) até chegar ao Chaplin de Ombro Armas. E há o desfecho fundado no paradigma das imagens borradas do crepúsculo de E O Vento Levou, de Victor Fleming e na cena magistral da volta à casa, totalmente fundada em The Searchers, de John Ford.

Steven não apenas cita, incorpora. Encarna a linhagem maior da cultura cinematográfica e por isso é um dos maiores cineastas contemporâneos, autor de inúmeras obras fundamentais, entre elas algumas obras-primas, que formam um acervo decisivo da Sétima Arte das últimas décadas. War Horse é um épico que faz parte dessa seleta emocionante de filmes e nos traz à tona a importância da memória como fundamento de idéias e princípios, como paz, honra, nação, família e glória. O patriotismo de Spielberg é legítimo, por ser ele um artista legítimo, que mantém na indústria do cinema a grandeza que se perdeu miseravelmente na maioria dos lançamentos. Steven não está aqui a passeio.

Por isso a guerra ocupa um papel central na sua obra. Basta citar Império do Sol e O Resgate do Soldado Ryan, entre outros tantos outros títulos que abordam os conflitos armados, como A Lista de Schindler ou os Indiana Jones e A Guerra dos Mundos. Neste War Horse, Steven faz a diferença entre uma guerra sem honra, a dos Boers, na África do Sul, e a I Guerra, contra os alemães.

A lembrança da guerra ruim entregue no final pelo filho ao pai que odiou ter lutado é a costura que a memória faz de vidas destruídas e que na família reencontram a paz perdida. Steven está filmando a Inglaterra e não os EUA e não fecha o cerco contra os alemães, pois em outra cena inesquecível há a colaboração entre dois soldados inimigos para salvar o cavalo do arame farpado.

O leilão final, arrematado pelo avô que perdeu a neta, apaixonada pelo cavalo, e que era apenas a única lembrança dela para o velho, também mostra que a memória é o tema principal deste grande filme. Precisamos lembrar, nos diz Steven, não para não repetir os erros, pois sempre repetimos, mas para resgatar a grandeza perdida. A memória é o passaporte para a emoção épica, para a transcendência de vidas comuns que encontram no exemplo da coragem, tanto em pessoas quanto em animais, uma forma de continuar inteiro na terra hostil.

Grande Steven Spielberg, nosso irmão de viagem. Artista de primeira grandeza. Um cineasta que deixa sua marca para sempre.

RETORNO - Imagem desta edição: Jeremy Irvine e Joey, o protagonista de War Horse.

Nenhum comentário:

Postar um comentário