22 de março de 2012

BUNNY DROP: UMA FAMÍLIA DE NARRATIVAS


Nei Duclós

O coelho de Alice in wonderland, de Lewis Carroll, corre grudado a um relógio, apavorado com o atraso, pois se perder a hora poderá ter a cabeça cortada pela rainha.O pai adotivo em Bunny Drop (2011), filme de Hiroyuki Tanaka (Sabu) corre para colocar a menina órfã (e seu coelhinho de pelúcia) na creche e assim não chegar atrasado no trabalho, onde faz marketing para uma grande corporação comercial. Carrol é um dos elementos do riquíssimo acervo cultural desta obra que filma um Shōjo manga, história em quadrinhos japonesa feito por mulher, a artista Yumi Unita, divulgado na imprensa do Japão desde 2010 e que tem previsão de novos lançamentos (nove volumes) até 2013.

O diretor Sabu é fã do filme alemão Corra, Lola, Corra (1998), de Tom Tykwe, mas prefiro Lewis Carrol como referência mais importante. O coelhinho em queda (Usagi Doroppu, original de bunny drop) é o mergulho da infância no abandono. Como poderá ser resgatada? Pelas mãos providenciais duo pai adotivo, homem solteiro de 30 anos, que enfrenta uma transformação radical da sua vida ao assumir a menina, deixada de lado pela família numerosa por ser filha temporã do patriarca e sua empregada, exatamente uma autora de mangás. A mãe não se sente responsável pela menina e prefere ficar com sua arte, que é o nicho original de toda a trama.

Como costumo dizer, é a arte voltada para si mesma, para sua própria linguagem. Os mangás tem uma história sofisticada e foram reproduções escritas e desenhadas de histórias dos teatros de sombras e fantoches que percorriam os vilarejos japoneses na alta idade média. Produzidos originalmente em rolos, é a paixão de muitas gerações de japoneses e se tornou um fenômeno de massa internacional principalmente depois da II Grande Guerra. Isso tudo pode ser visto em bons verbetes da Wikipedia e não vale repetir aqui. Interessa que Sabu coloca em frente às câmaras a complexa rede de tradições e transgressões da cultura visual e audiovisual, como é o caso dos animes, os filmes de animação.

Soa um pouco estranho no filme as reações exageradas das pessoas diante de algumas surpresas, como a aparição do neto muito parecido com o avô morto, ou o ataque de irritação na hora do telefonema para a mãe verdadeira da menina. Mas faz parte da cultura dos animes que Sabu coloca como referência. Parece não funcionar direito, mas esse é seu objetivo, cruzar inúmeros vetores. Como os clipes da cultura pop e que povoam a fantasia do rapaz agora exilado das baladas, já que a paternidade é radical e inclusive lhe corta a cabeça, ou seja, o expulsa do prestigiado posto do marketing para a vida bruta operária das embalagens.

A queda social do protagonista representa as dificuldades de quem tem crianças para cuidar no Japão ultra-moderno. No marketing, todos se ocupam até tarde com horas extras e quando uma funcionária engravida, ela se demite. No setor de embalagens, dezenas de pais orgulhosos fazem apostas sobre qual filha é a mais bonita, usando para isso as imagens dos seus celulares. O setor operário é o sonho das mulheres que querem pais responsáveis focados nos seus filhos. A preocupação é com as crianças que por vários motivos perderam todo ou parte do apoio dos adultos.

As pessoas são pais e mães e o amor vem em ondas, diz o protagonista. Mas para que a ferida possa cicatrizar, é preciso manifestar a dor com toda a intensidade, nos diz essa obra que encantou o público quando estreou nos festivais internacionais de cinema. E principalmente pais adotivos que assumam a verdadeira paternidade. Essas duas providências acontecem na história.

A obra nos brinda com a cena mais pungente do cinema contemporâneo, que é a despedida do casal de órfãos de 6 anos no cemitério, aos prantos e aos berros, diante do túmulo do pai do garoto. A menina, que também perdeu o pai, entra no mesmo ritmo do desespero, numa explosão emotiva considerada piegas pela percepção obtusa de alguns analistas, que projetam nas obras o que carregam dentro de si. Nos funerais familiares, eles não tiveram a chance de chorar e dizer adeus. Por isso fugiram para manifestar a perda e a saudade.

A fuga do casal de órfãos foi provocado por um equivoco recorrente nas escolinhas (no Brasil, nem se fala): o de fazer as crianças escreverem sobre pai e mãe. Deveriam ser e incentivadas a escrever sobre as pessoas que cuidam delas, sejam pais adotivos ou não, avós, tios etc. Se sentindo rejeitados por não terem acesso à paternidade, eles somem da vista dos adultos.

A menina Rin Kaga (interpretada por Mana Ashida) foi colocada de lado na cerimônia, por ser filha temporã do patriarca, que escondeu a paternidade tardia de todos. E a mãe do garoto Koki Nitani ( Ruiki Sato) esconde do filho a morte do marido, obrigando-o a fugir para poder assumir sua grande dor. O pai adotivo é Daikichi, interpretado por Kenichi Matsuyama que fantasia com Koki antes de conhecê-la. Ou seja, a nova família está prestes a se formar e curar de vez a orfandade.

O cinema tem pais: os mangás, os animes, a literatura infantil. Irmãos: as mídias digitais, os celulares. Tem filhos: os videoclipes. Trata-se de uma família de narrativas, resgatadas e cruzadas numa só obra. A numerosa família que rejeita a filha temporã do patriarca no fim se arrepende e aceita a menina. O jovem que estava solto encontra um sentido na paternidade responsável. A mãe que abandonou a criança se emociona com o sorriso dela estampado no celular. A orfandade tem cura. Para isso é preciso uma nação, um povo e a confluência de muitas culturas. Em Bunny Drop, uma família de narrativas se mobiliza para trazer de volta a garota que perdeu o arrimo. Alice segue o coelho apressado, enfrenta a tirania e se reencontra na volta à superfície.


RETORNO - Imagem desta edição: a menina Rin Kaga e Kenichi Matsuyama em cena de Bunny Drop.

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