5 de março de 2012

SERENO


Nei Duclós

Tão bom quando nos entendemos. É quando o conflito universal respira, aliviado. Desse momento nascem os mais belos pássaros.

Cada novo amor é assim: parece infinito o acervo de revelações. Mas ele está gasto de uso. Melhor esquecer e imitar a gota de sereno antes de sumir diante da imensidão do amanhecer.

Cansei de não ser nada esperando tudo. Agora será ao contrário.

Posso viver sem você. Assim como o dia não precisa do sol.

Não suporto nada que não te traga de volta. Minha teimosia. Minha vontade de brigar. Os navios que partem em vez de chegar.

O tempo indiferente nos trata mal. Inviabiliza o sentimento. Imagino economizar para o futuro, quando nos batermos de frente.

Diga, poema, o que falta para o sonho. Faço qualquer coisa. Quer que eu plante bananeira?

Passei a tarde toda esperando. Nenhuma palavra de alento. Por isso caio como um pássaro abatido pelos rifles do escuro.

Sem o visgo não há coração que aguente. Tudo fica gelado como um vento vindo da montanha.

O dia se fechou até se extinguir sob a capa da noite, que se aproximou cinza e caiu como neblina sobre o corpo ardido de sol e poesia.

E você muda, musa silente. Nos ferimos no duelo, quem costura?

Não posso falar da graça das tuas meias, do coração tatuado na coxa, do teu nome molhado. Seria muita bandeira. Melhor ficar quieto, como sempre

Deixe o amor livre para ele encontrar teu rumo todos os dias.

No fim não é nem o toque que importa, mas a expectativa do estrago condensado numa fantasia que se realiza.

Sinto falta mesmo de passar de leve os dedos nas rendas da tua blusa. Quando sorrias arrepiada imaginando o resto.

Se voltarmos, a terra se cobrirá novamente daquela vegetação condenada, flor.

Te mandei embora. Embarquei no trem das 6.

Ok, vou fazer um torniquete no coração para parar de sangrar. Não tente ajudar, é pior.


PÊSSEGO

Março começa a soprar um vento morno. Mistura de verão terminal com rebentos de outono. O corpo se mexe com desconforto. Não aguardo mais nada, minha flor.

Aquela região do joelho que parece feita de alabastro e pêssego e que vi a distância, eu poderia tocar, sem arranhar, com minha pata de leão?

Venha onde estou, me disse ela. Não se recolha aos portais do nada. Conviva com a ilusão de devorar o tempo. Esteja atento à dor de ser eterno. Não morra com a poesia montando guarda. Não posso, respondi. Preciso todas as manhãs colocar a carruagem do Sol em movimento.

Querias que eu fosse suave, se sou urso. Que fosse frágil se sou susto. Que eu fosse março, mas sou outubro.

Chegaste atrasada, esbaforida, ansiosa, com a pele morena de verão brotando suor sobre a lentes escuras. Quem mandou se trancar no trânsito? Na próxima vez solto os cachorros, imprescindível

Não perdeste teu tempo procurando sintonias. Vieste de chofre no entardecer de ruídos. E prometeste um beijo no primeiro minuto, só me olhando de alto a baixo.

Apenas duas estrelas como pingos de metal no veludo. Desejos que se completam ditos em segredo. Quero você e o primeiro selo entre corpos que se procuram

E se acontecer uma troca de sorrisos, o que fazer no momento seguinte? Não temos para onde ir, as paisagens estão todas ocupadas com o fato de não terem nascido para nós, peregrina.

Nenhuma palavra trocada, nem sequer flerte. Devo ter enlouquecido. Fadas invisíveis riem. Duendes fazem apostas. Querem ver quando pagarei o mico de te dizer bom dia.

Pensei que nem eras assim tão atrativa. Talvez eu esteja enganado, procurando o que não devo em criatura tão remota. Mas basta te ver que todas as evidências caem de quatro.

E impossível desistir desse visgo, que se manifesta sem base ou objetivo. Pura fantasia, feita de cinzas. És a neblina do acaso, magnífica.

Desse jeito vou desencanar de você. Colocar viseiras. Olhar para o chão, correndo o risco de seguir teu rastro, insubstituível.

Dias e dias sem te ver. Até que notei a defasagem de horários. Não faz sentido. Teu andar, teu requebro único, teu rosto que finge ser impassível não me avisaram nada.


CRESCENTE, QUASE CHEIA

Afastei amores com minha teimosia. Depois pastei no ermo junto com as feras. A Lua veio em meu socorro e me soprou o verbo. Mas desperdicei contigo, minha bela.

Ainda não estou Cheia, disse a Lua. Espere a mudança que ela será tua.

Não cansa de falar na Lua? disse ela. Sim, respondi. Vamos falar de ti.

Peço conselhos, a Lua reage. Não basta o meu brilho? diz. A forma redonda boiando no céu sem fim? Queres mais? Que eu desça aí e te diga que ela está a fim? Folgado.

Tem algo sobrando em mim, o coração que te quis loucamente e agora vaga pela calçada fria da Lua que se esconde.

Por isso me recolho à poesia, reduto da solidão de olho de vidro. Vejo a Lua, quase cheia no final da tarde. Ela ri, a malvada.

Quando as nuvens escuras rodeiam a Lua, parece que ela nos faz uma advertência antes de sumir por um tempo. O que nos diz, suprema?

É ilusão.Achamos que a Noite impera em todos os sentidos, mas ela é apenas a corte da Lua, rainha de verdade nesta vida bruta.

Melhorei. Saí lá fora e vi o brilho da Crescente inundar o crepúsculo. Imaginei essa luz no teu vestido.



RETORNO - Imagens desta edição: obras de Steve Hanks.

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