11 de abril de 2012

SAMUEL FULLER E A REMISSÃO DOS PECADOS


Nei Duclós

Cenas de documentários são a chave para dois filmes de Samuel Fuller que vi recentemente. Em Naked Kiss, de 1964, a Veneza turística ilustra uma vida de dissipação que mascara o crime de pedofilia do autor das imagens. Em Verbotten, de 1959, o pedesadelo visual do Holocausto serve para esclarecer o jovem alemão que permanece atraído pelo nazismo mesmo depois da grande derrota. O cinema como ilusão e denúncia funciona assim em seus polos opostos, intensificando a complexidade de um direto no queixo. Fuller filma sem subterfúgios, mas jamais é simplista. Sua bandeira é a Justiça rigorosa convivendo com a tolerância.

No Beijo Amargo, a prostituta caçadora de dotes chega na pequena cidade para dar o golpe do baú, mas acaba se redimindo de seu passado ao se envolver com crianças deficientes e ao punir o culpado pelo crime de assédio infantil. Em Proibido, a alemã que nega o nazismo e se casa com americano por interesse acaba se apaixonando pelo marido e ajuda o irmão a sair da garra dos terroristas que querem a volta do Fuhrer.

Não se pode condenar uma pessoa por ser prostituta ou alemã, nos diz Fuller. Samuel era filho de migrantes judeus (pai russo e mãe polonesa) , e tinha Rabinovich na origem, substituído pelo sobrenome de um dos tripulantes do Mayflower, o barco fundador da América.

Qual é ao direto no queixo ? A abertura de Naked Kiss é célebre e didática: a prostituta que teve o cabelo raspado por se insurgir contra o cafetão, bate nele para recuperar o dinheiro que lhe deve. A de Verbotten usa a Quinta Sinfonia, composta por um alemão eterno, para pontuar um ataque de soldados aliados a um atirador nazista. O espectador fica fisgado desde o primeiro segundo. Esse tipo de abordagem, brutal e brilhante, se repete ao longo das narrativas. A câmara não esconde as intenções das mulheres no início do golpe, mas também não esconde quando mostram sinceridade. Ao ver, o espectador se convence das boas intenções de quem pecou no início.

Qual é a complexidade? Nem todo alemão é nazista, nem toda a prostituta é suspeita. A necessidade de sobrevivência pode levar a um desfecho moral e não apenas cercar o personagem numa jaula anti-ética. A luta pela tolerância obrigou Fuller a sair da América, quando o macartismo venceu na caça aos considerados comunistas. Seu filme White Dog (1982), é sobre racistas que treinam cães para atacar negros.

A intolerância venceu e Fuller, recolhido ao exílio, foi muito homenageado na sua longa vida (1912-1997). Seu cinema, feito de nuances, apesar de extremamente objetivo, perdeu a parada, pois o que vemos hoje é a celebração da intolerância. Mas permanece como cineasta cult, que foi incensado pela equipe da Nouvelle Vague nos Cahiers Du Cinema nos anos 50 e 60 e até hoje é considerado obrigatório.

Sua denúncia contra os bem intencionados, hoje conhecidos como politicamente corretos, é brutal. O bilionário que dava presentes para os pacatos cidadãos da cidadezinha onde ele dominava, impondo-se como benemérito, era apenas um pervertido. E a mulher que oficialmente deveria ser considerada pervertida, luta para se redimir e ter uma vida decente. O soldado que poderia voltar para casa tranquilamente prefere ficar na Alemanha devastada em nome do amor por uma mulher que fazia parte do inimigo. Chega ceder à tentação de culpá-la, mas acaba se convencendo da sua remissão.

O pecado não é permanente, tem cura, pela Justiça rigorosa (aparecem as cenas do juglamento dos chefões nazistas em Nuremberg) aliada à tolerância (o beijo entre desiguais, a sintonia entre saudáveis e doentes). O que tem de proibir é a desfaçatez , o ódio e a violência, não o amor entre pessoas de nacionalidades diferentes, ou a chance de alguém mudar de vida.


RETORNO - Imagens desta edição: cenas de Naked Kiss e Verbotten.

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