19 de maio de 2012

ONIBUS 174: A ARTE DE MATAR UMA MULHER


Nei Duclós

O assassinato de Geisa Firmo Gonçalves, refém do caso do Ônibus 174, está no núcleo do drama do documentário de José Padilha de 2002. O crime foi o resultado do confronto entre os homens que fazem parte do poder no Brasil (autoridades e policiais) e as mulheres, suas vítimas.  Aparentemente, o protagonista é o criminoso Sandro, que aos oito anos abandonou-se na rua para fugir do que viu: três marmanjos apunhalando sua mãe pelas costas. Foi-se para os grupos de menores abandonados nas ruas, que dormiam em frente à Igreja da Candelária, onde testemunhou o massacre de policiais contra crianças. E atingiu o limite, o sequestro do ônibus 174, no Rio, onde deu três tiros na mulher que estava sob seu domínio. Por coincidência, três tiros também pelas costas.

Soubemos depois que a quarta bala, essa no rosto, foi do policial que abordou Sandro desastradamente, quando ainda ele estava dono da situação, ou seja, com um revólver apontado para sua vítima. Foi o desfecho de uma sucessão de crimes, todos contra as mulheres. Estas estão no vórtice da tragédia, pois tudo gira em torno delas.

Sandro liberou os reféns homens e manteve três mulheres sob custódia, ameaçando-as durante horas, numa lenta agonia televisionada e resgatada por Padilha em todos os seus detalhes. Como se o sequestrador tivesse algo a acertar com o episódio que destruiu sua família. Ele tinha passado pelas assistentes sociais, para quem confessou sua impotência diante da vida, já que ninguém daria emprego para um negro pobre e analfabeto. Tinha convivido com as infelizes companheiras de infortúnio, na rua em busca de drogas e de muitos assaltos. Fora recebido por uma mãe adotiva depois de ter fugido de um chiqueiro a que chamam cadeia (mostrado por um carcereiro desesperadamente lúcido ). E carregou pela vida a mancha (esse era seu apelido devido a uma marca no corpo) que o testemunho da morte trágica da mãe impregnou em sua identidade.

Sandro precisava manter as mulheres sob sua mira para reincorporar o momento em que viu a mãe sendo assassinada. Simulou o assassinato de uma delas para forçar sua libertação da sinuca em que se metera. E saiu com Geisa porta afora quando  ninguém mais tolerava aquela crise de loucura e incompetência do poder. Os atiradores de elite praticamente foram proibidos de resolver o problema por ordens superiores, mesmo o criminoso mostrando a cara e pedindo para ser morto. Fosse nos Estados Unidos, onde matam com muito menos condições, seria automático. Mas parece que havia interesse em espichar o espetáculo que estava dando audiência.

Nunca se viu um show tão deprimente.Policiais se comunicando com sinais em plena era digital. Negociadores que não levavam a nada. Um cerco absurdamente longo para dominar apenas um ladrão pé de chinelo. Não se tratava de um sequestrador preparado, era um ladrãozinho que improvisou tudo e ficou prisioneiro do que inventou. A maior vitima aqui é você, disse uma das mulheres que estavam sob sua mira.

Tanta espera e gritaria e acessos de loucura para acabar no pior, a morte da refém. A queda em câmara lenta de Geisa, que jogou as pernas para o alto ao se estatelar no chão depois de receber o impacto do tiroteio, mostra a mulher sendo arrastada para a morte por obra da brutalidade dos marmanjos no país da covardia. Se perguntarem de novo para as celebridades internacionais que nos visitam o que acham da mulher brasileira, a melhor resposta é: Estão sendo assassinadas.

Uma das reféns não consegue mais falar, se comunica escrevendo. No documentário, ela pergunta por gestos por que não atiraram quando o sujeito tinha colocado o braço e a cabeça para fora. Porque não deixaram. Alguma sumidade em palácio republicano decidiu que não deveriam fazer isso. Tem crimes que precisam de especialistas da morte que atingiram o estado da arte. A arte de matar uma mulher.  Sandro também foi morto, pois a polícia se vingou de ter sido apanhada em sua própria incompetência. Era preciso erradicar o motivo da desmoralização.

José Padilha, tremendo cineasta, é do ramo. Pega um, pega geral.