26 de junho de 2012

FATO NÃO É HISTÓRIA


Nei Duclós

História é a abordagem dos fatos nos princípios e técnicas de uma metodologia científica, isenta de ideologia. O materialismo dialético, por exemplo, obedece a princípios e técnicas, que podem levar ao esclarecimento sobre períodos do passado ou eventos do presente, mas deixa de ser ciência quando se submete a uma ideologia, mesmo que tenha sido criada dentro do seu rigor metodológico. A metodologia weberiana do Tipo Ideal é ciência à medida em que não se submete a uma pretensa hegemonia do destino manifesto do capitalismo.

Os franceses da Annales incluíram fatos, populações e enfoques que tinham sido marginalizados por Ranke, o fundador da História institucional eurocêntrica,  (aquela que determinava ser outros territórios fora de seu foco como “terras sem História). Mas o minimalismo das microhistórias acaba também virando uma distorção quando seus seguidores renegam ou desprezam a hegemonia de superestruturas poderosas que formatam a vida das nações.

Hoje virou epidemia considerar tudo como fato histórico. Há uma fome de História no ar, que serve para todo tipo de equívoco. O mais frequente é a reportagem sobre pretensos momentos históricos. Como a História não pode ser vista a olho nu, pois é a costura de manifestações humanas no tempo e não o olhar cru sobre elas, fica claro que o reportado não passa de documento, fonte, vestígio, pista. São insumos para a História, mas não a própria.

O erro se espalha e se consolida porque os jornalistas em geral não possuem formação acadêmica (os professores de “comunicação” adoram obrigá-los a ler Notícias do Planalto, por exemplo, em vez de Walter Benjamin ou Pierre Bourdieu) e acham que podem devorar o mundo com seu trabalho, quando não conseguem nem distinguir o que é um fato do que é História. As câmaras que filmaram o incêndio do Reichstag na Alemanha da ascensão nazista não registram um fato histórico, registram um fato ponto. A História vem depois: foi obra de Hitler? Serviu para consolidar a tirania? Significa o fim da democracia e a explosão do terror estatal? Aí entra a História, ciência humana e não documentário.

Weber nos ensina que os fatos não podem ser resgatados  (são “incomensuráveis”) a não ser sob a ótica de uma metodologia. O que vemos na mídia são versões, até mesmo as transmissões ao vivo, limitadas por frames, luzes, transmissões e telas em determinados espaços de tempo. Não porque a Imprensa seja a coisa malvada que todos dizem (e o termo PIG, que significa porco,  lembra bastante a acusação nazista contra a imprensa “nas mãos dos judeus”, identificados com a sujeira) mas porque é impossível resgatar o passado (que se repete primeiro como tragédia e depois como farsa, como diz Marx na célebre abertura do seu 18 Brumário). É um truque do tempo: o que passou some, mesmo que tenha deixado pistas. Estas servem não para reconstituir o que aconteceu, mas para que haja uma percepção do que aconteceu dentro de um rigor metodológico, de uma técnica, num ambiente visual, sonoro ou escrito ou, de preferência, tudo isso junto.

Vemos como os documentários sobre a natureza consolidaram alguns enfoques repassados como científicos. Um: o de que existe aquecimento global. Dois: que os filhotes brincam para treinar a vida adulta. Três: que tudo ou quase gira em torno do acasalamento e da reprodução. Quatro: o tratamento de irracional para criaturas que possuem técnicas de sobrevivência, linguagens próprias e encontram soluções originais diante de dificuldades. Sobre os anos 60, já sabemos: o mundo mudou  e o sonho não acabou. E por aí vai.

Numa faculdade de História não estudamos fatos . Não ficamos decorando as guerras Púnicas. Estudamos metodologias.  Aprendemos a aprender. Posso dizer isso pois fiz História na USP e passei com média geral de 9,3. Uma chuva de dez em vários trabalhos. Falo não para me afirmar, mas para apoiar o que digo acima. Parece estranho, mas é assim que funciona. Portanto, senhores da mídia, parem de falar em histórico a três por quatro. Vocês não sabem do que se trata.

RETORNO -  Imagem desta edição: uma versão visual imaginada em que Anibal assombra os romanos nas Guerras Púnicas.  Tirei daqui.