10 de junho de 2012

STATUS X MISÉRIA: A ESPERANÇA É UM CRIME


Nei Duclós

Algumas palavras tornam-se indecentes quando usadas em determinadas situações. “Ingredientes”, por exemplo, que um analista em close na TV vibrou para comentar o crime hediondo do assassinato e esquartejamento do ex-executivo da Yoki pela própria mulher. Como se o impacto causado na opinião pública obedecesse a uma receita de bolo, quando os motivos do alarme são óbvios. A ascendente social guindada da prostituição à cobertura de luxo pelo casamento com um milionário colecionador obsessivo de armas sentiu faltar o chão quando soube da traição do marido, sinal de que a devolveria, talvez, para o gueto social ao qual pertencia anteriormente.

Isso não explica a crueldade e o sangue frio da assassina, mas há no crime algo que toca fundo a cidadania em pânico nesta quadra do esgarçamento social, quando, só no RS, há um crime a cada 2,5 minutos, como nos informa a Zero Hora. Os arrastões em massa nos restaurantes e condomínios de luxo, o varejão do sequestro relâmpago, a fuga combinada dos presídios em que multidões de prisioneiros saem pela porta da frente, a liberação do pequeno tráfico de drogas, a recessão econômica maquiada de benefício social e crédito podre, entre muitos outros agravantes, chegam ao apogeu no ponto nodal do esquartejamento que a miséria fez do status.

Ficou desmoralizada a análise superficial baseada em erros de leituras sociológicas de que o crime é fruto da exclusão social, já que existe bandido de todas as classes, principalmente entre as famílias ricas onde jovens bem nutridos se atiram à gandaia da vida facinorosa. Mas o erro da análise não elimina a importância da sinistra distribuição de renda no país que criminaliza a esperança.  A vagabundagem corre solta e captura as mentes para todo tipo de ação mortal, desde as mais recentes, pautadas pela tecnologia, como é o caso de desvio de dinheiro via internet, até o velho conto de vigário, como aconteceu com o belo e esperançoso casal de Diadema, Leila e Adenísio (foto acima), que sonhavam com uma volta à natureza.

Queriam um pequeno sítio fora da brutalidade urbana e para isso fizeram uma poupança, roubada por criminosos que os atraíram para uma arapuca. Prometeram um preço camarada, desde que fosse à vista, em cash e lá foram nossos dois queridos brasileiros, trabalhadores cheios de esperança, fechar um negócio sem conhecer os trâmites básicos desse tipo de transação, que é fazer tudo às claras, num cartório, com testemunhas e não num ermo brabo onde encontraram a morte e foram sepultados num poço.

Talvez o negócio tivesse esse aspecto suspeito de todos os negócios no Brasil, de algo fora da burocracia oficial.  Para facilitar e agilizar as coisas, nada melhor do que tratar diretamente com o proprietário, sem o jugo de papéis inúteis ou de carimbos caros. Essa tentação que está por todo o canto criminalizando tudo facilita o roubo e o assassinato e o casal foi vítima de sua inocência misturada com a pressa de fazer acontecer. Imaginemos quanto tempo levaram para conseguir nove mil reais (três mil foram retirados de um caixa eletrônico pelos bandidos) trabalhando como babá ou operário.  Eis que chegou o grande dia e eles foram com as notas da sua honestidade se entregarem para a gula da preguiça sem piedade.

O que tem a ver status com isso? Muito. Marginalizados economicamente, as duas vitimas optaram pela poupança, o honesto investimento popular, para conseguir sair do ambiente brutal onde viveram tanto tempo. Quem vive em lugares inóspitos e cruéis das grandes cidades, especialmente em seus abandonados subúrbios, sabe o quanto vale sonhar com um lugar pacífico, perto das plantas e dos bichos, longe do barulho e da poluição.  A miséria ambiente força a cidadania a buscar uma saída e ela, nessa busca, pode encontrar a frustração e a morte, quando procurava até, talvez, uma alternativa de sobrevivência na atividade rural.

Essa é a tragédia do país entregue à sanha de todas as máfias, com as instituições comprometidas por bandidos da pior espécie, que exibem a cara deslavada da riqueza de fonte suspeita e impune, já que sempre conseguem sair das prisões onde ficam alguns dias ou algumas horas. O mau exemplo vem de cima e se espalha por todo o tecido social em frangalhos. Os sobreviventes, os lutadores, assistem a tudo pasmos de espanto e medo. Ver um casal milionário se destruir numa cobertura cheia de armas “legais” (quer dizer que um colecionador pode ter um arsenal em casa desde que seja rico,  sr. delegado?) discutindo pelo butim (traição = separação = distribuição de bens) leva à percepção da profundidade do mal que abate o país.

Mas a dor maior, se é que se pode falar isso, é resgatar os corpos do casal pobre do fundo do poço, rescaldo de uma vida cheia de esperança que foi jogada no lixo junto com a soberania da nação que perdeu o rumo do seu grande destino.Talvez os crimes revelem algo mais profundo ainda: a de que o esquartejamento foi obra de máfias em conflito (para que tanta arma no apartamento da vítima? não haveria aí tráfico?) na maré alta de um negócio milionário, R$ 1,7 bilhão da venda da Yoki; ou a de que o assassinato do casal signifique o desespero de quem viu sua poupança se esfumar com as medidas do governo e resolveu arriscar num imóvel. Em ambos os casos, o dinheiro entra como o principal suspeito.