22 de setembro de 2012

INTOCÁVEIS: PRETTY WOLMAN DA ERA FACEBOOK



Um filme medíocre, meloso, que encanta as plateias porque usa o mito ancestral, o da Cinderela, repete jargões de outros sucessos do cinema, tem a aparência politicamente correta (a impiedade humanitária do tratador para com a vítima que ele cuida), se sintoniza com comportamentos emergentes e contrapõe migrantes e conservadores numa convivência pacífica e amorosa, típico verniz para a situação explosiva cada vez mais intensa no mundo.
 

Nei Duclós

O mega-sucesso francês “Intocáveis” (de  Olivier Nakache e Eric Toledano, 2001) tem várias sintonias com outro preferido do público: o americano Pretty Woman (de Garry Marshall, 1990). É a sempre bem aceita síndrome de Cinderela, quando alguém muito pobre tem acesso a um palácio, a um personagem rico e pinta um clima que acaba emocionando a platéia e acaba sempre bem.  A prostituta (Julia Roberts) contratada como scort pelo multimilionário depredador de empresas (Richard Gere) é, na versão francesa, o afrodescendente (Omar Sy) que é escolhido como acompanhante do ricaço  (François Cluzet) com todo o perfil do nobre europeu, já que não sabemos qual a origem da sua fortuna.

Em ambos os filmes, o personagem carente acaba experimentando um banho de loja e de cultura. Até a cena da ópera é idêntica. A solenidade do evento artístico é quebrada pelo furão ignorante divertido, para espanto da seleta convivência. Há ainda o contraponto óbvio entre o vazio de quem tem dinheiro e a alegria de viver de quem não tem. Sim, tolinhos espectadores, dinheiro não traz felicidade a não ser que entre no circuito alguém que jamais teria acesso a tanta riqueza e faz tudo ficar com algum sentido. A grana, enfim, vale para alguma coisa, desde que o emergente traga de suas origens aquele visgo que só a escravatura é capaz de dar com seu rebolado e seu sapateado. E que ganha o olhar complacente dos funcionários bem postos do privilégio, como o gerente de Hotel de Pretty Woman ou as secretárias de Intocáveis, todos no papel da fada madrinha que incentiva a presença do ungido no baile.

Trata-se de uma sucessão de truques manjados que levam o público a se emocionar com o que parece ser a diferença, a diversidade, a correção social e política, o acesso às jóias culturais etc. Mas são apenas truques que se desmascaram ao longo da narrativa. Há um claro deboche à arte de vanguarda, quando fortunas são pagas a borrões vermelhos sobre telas brancas e o maconheiro afro acaba ganhando 11 mil euros por algo que ele resolveu jogar na tela sem nenhum critério. As imagens de Magritte e Dali, assim como o som de As Quatro Estações, de Vivaldi, são como posts recorrentes do Facebook, exemplos do que parece ser erudição e é apenas obviedades da percepção. Não é preciso muita formação para saber de Goya ou Freud, mas o pacote é servido como a essência de vidas que buscam um sentido no meio de seus dramas.

Quanto ao fato de ser “baseado em uma história real” lembra os irmãos Cohen que colocaram isso no início de um filme deles e depois disseram que era ficção. No caso de Intocáveis, o tetraplégico bilionário branco e seu parceiro do Terceiro Mundo aparecem no final como seres reais, como se as suas biografias tivessem sido retratadas no história. É mais uma sintonia com as redes sociais: o avatar, a personagem virtual, é colada ao real, mas ganha vida própria e muitas vezes e pode perder totalmente a sintonia com ele.

Há também no filme a identificação com a moda atual do relacionamento homoafetivo e não se trata apenas do casal gay da secretária do ricaço, mas dos próprios personagens principais, em que visualmente e no relacionamento amoroso que nasce entre eles, o passivo milionário depende das iniciativas do ativo pobretão. Claro que tudo recebe um verniz de comédia romântica, quando enfim é servida a presença real de um romance hetero epistolar. Mas isso só acontece num momento, enquanto o relacionamento homo pontifica o tempo todo. Nada demais, a não ser o fato de que isso não é assumido claramente pelo filme, como se estivesse apenas abordando uma amizade entre dois rapazes, quando está na cara que os dois formam um casal.

Não poderia deixar de existir nessa obra fake o recurso irritante do clipezinho, em que as atividades divertidas dos dois que acabam se encontrando chegam ao esplendor de voos em espiral de parapente, num clímax de gerar urticárias pela obviedade e apelação. Mas quem vai evitar esse tipo de filme, de usarem esses expedientes, se a cada vez que repetem conseguem acertar na veia da arrecadação? Dinheiro, é só do que se trata. É um filme medíocre, meloso, que usa todos os elementos de hoje (inclusive citações sobre a atual campanha presidencial americana) e encanta as plateias porque usa o mito ancestral, o da Cinderela, repete jargões de outros sucessos do cinema, tem a aparência politicamente correta (a impiedade humanitária do tratador para com a vítima que ele cuida), se sintoniza com comportamentos emergentes que ganham grande destaque e contrapõe migrantes e conservadores numa convivência pacífica e amorosa, típico verniz para a situação explosiva cada vez mais intensa no mundo.

Fazer sucesso não é crime, a não ser quando a manipulação extrapola e a obra procura aparentar ser o que não é. A alienação imposta deve ser desmascarada para podermos estragar a festa.