22 de setembro de 2013

OS PAPÉIS DA VERDADE



Nei Duclós

Não basta denunciar, é preciso estratégia e competência da linguagem na difusão da denúncia e  o apoio isento de pelo menos um poder da República, o Judiciário. Se não houver esses dois elementos a denúncia poderá soar como calúnia, por mais comprovada que seja. O exemplo dos Papéis do Pentágono é esclarecedor. O analista militar do governo, funcionário da corporação Rand, Daniel Ellsberg (foto), contrabandeou dos seus arquivos 7 mil páginas de documentos secretos sobre o Vietnã, como mostra o excelente documentário “O homem mais perigoso da América”, disponível no you tube, legendado. O New York Times levou dez dias para selecionar o material e cravar a capa. Foi imediatamente calado pelo governo. Qual a estratégia a seguir?

Perseguido pelo FBI, Ellsberg disseminou cópias para 17 jornais e a denúncia se transformou numa hidra de múltiplas cabeças. Se uma era destruída, outra se manifestava. O autor desse feito antológico foi inocentado pelo Supremo americano, que cumpriu seu papel e o defendeu baseado na liberdade de expressão garantida pela primeira emenda da Constituição. Mas os efeitos se revelaram contraditórios,pelo menos nos primeiros momentos. Nixon foi reeleito, apesar de ter sido desmascarado junto com outros 4 presidentes americanos, desde Eisenhower . Mas teve de renunciar para evitar o impeachment, como aconteceu aqui com o Fernando Collor nos anos 90, porque foi flagrado em Watergate, que no fundo aconteceu em consequência da denúncia de Ellsberg.

O documentário explica: ao tentar se vingar do seu ex-agente, Nixon violou os arquivos do psiquiatra de Ellsberg e no embalo mandou invadir a sede da candidatura democrata no edifício de Watergate. O Washington Post e dos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein acertaram a mão ao mergulhar na devassa da campanha da oposição feita pelo governo republicano. Foram divulgando aos poucos, conforme a reportagem evoluiu e com isso desmascararam o discurso do poder, que era flagrado na mentira a cada momento. A hiperdosagem dos Papéis do Pentágono não teve a mesma eficiência (pelo menos diretamente) da homeopatia mortal do caso Watergate.

Ellsberg declarou-se decepcionado com seus contemporâneos, que ouvem, concordam, mas não tomam providencias, não saem da sua zona de conforto. No Brasil, assistimos a um fenômeno parecido. Há décadas a imprensa faz denúncias e tudo fica por isso mesmo, graças à Justiça que mantém os acusados fora da cadeia, ao esquecimento do eleitor, à indiferença do eterno presente e o hábito da dispersão. Os acusados aproveitam, ainda mais que a mídia sofre de incompetência congênita de linguagem. Há excelentes matérias sobre os escândalos e crimes das autoridades, mas normalmente se faz a denúncia com texto de escrivão de BO, especialmente nas hard news, o que aborrece o leitor, exausto diante dessa maneira tosca e recorrente de abordar temas importantes.

 Com a incompetência do ofício, tudo se parece e acaba perdendo o impacto. Inunda-se os espaços da percepção coletiva com uma quantidade enorme de textos e imagens que acabam se revelando inócuas. Figuras notórias, alvos das investigações, mantém uma sobrevivência permanente, voltando à tona a toda hora para cometer mais crimes e voltar à sombra.

A solução, entretanto, não está só na maneira eficiente de divulgar as denúncias, mas o acompanhamento e intervenção da Justiça, o que ocorre de maneira contraditória e muitas vezes decepcionante. Os poderes da República sofrem de tentativas de aparelhamento do governo e os limites são bem conhecidos. Ao cidadão resta tentar desconstruir o discurso oficial por meio da lucidez cultivada pelo espírito habitado, a percepção atenta e os olhos livres. Tarefas complicadas, mas não impossíveis. Só com um ambiente de massa, coletivo, favorável à ética, e com precisão e competência no exercício da linguagem descompromissada com os jargões do crime, poderemos resistir e reverter essa situação de calamidade nacional.