25 de maio de 2014

FORA DO CADERNO



Nei Duclós

A solidão, a despedida, faziam parte da família. No território ímpio da ausência medrou a poesia.

Fechei o caderno. As memórias cansam.

Depois de contar sua vida, invente outra.

Olhava para o teto, que transcendia. Estava em outra religião, a do heroísmo. Quando descia, era um despencar de amor impossível. Tudo junto naquelas tardes de moças inesquecíveis.

Nosso amor não passa de uma frase. Mas já dura anos.

Deus te crie. Deus dentro de ti.

Não sei de onde tiro o que te aproxima. Talvez a vontade que me desperta todos os dias. De estar contigo, mesmo que não existas.

Deste indeciso amor nada ficará. Só quando o vento soprar numa pluma esquecida no teto é que haverá memória do que hoje desconfias.

Palavras passam como nuvens. Algodões em teus verões expostos. Chuva nas reservas do teu corpo.

Te decepciono com as alternativas que me dão por perdido. Mas sempre fui assim, neblina dos meus olhos.

Fomos corridos pelas evidências do que somos. Mas driblamos o explícito com nosso ofício, tirar som da pedra bruta.

Não estás afim, mas não me importo. Vale o escrito, desenhado em teu muro.

Minto para viver o que me negam. Sinto para dizer a verdade.

Desistimos porque tudo parece o mesmo. Mas cada minuto é o milagre que pedimos.

Moro em ti, amor que a vida permitiu. Onde me refugio, canteiro sob a varanda dos teus dias.

Saudade é a identidade do amor verdadeiro.

Esfriou. Subitamente. O inverno é uma visita que não se anuncia, embora esteja prevista no calendário. Achamos que o calor continuará para sempre. De repente, estamos em plena geleira sem tempo de migrar para os verões remotos.


O mesmo verso antigo que guardaste um dia agora está na esquina passando frio. Convide-o para um café e escute com outros olhos o que ele disse.

Sonhei-me em teu sono.Me despertaste porque queria tocar.

Amanheceste sem auxílio de ninguém. És um impulso que inventa o dia

Nenhum som, nenhuma luz lá fora. Tudo se refugiou no que chamas alma e que é tudo de ti.


 OLHAR PERDIDO

- Sempre achei que homem não ama, disse a Sereia.
- E é verdade, disse Jack o Marujo. Eu apenas me perdi no teu olhar.

- É sublime o fato de você ser sereia, disse Jack o Marujo.
- Por que? perguntou a Sereia.
- Porque fico trêmulo ao te tirar as escamas.

- Tem certeza que me ama? disse a Sereia.
- Certeza não tenho, disse Jack o Marujo. Só uma espécie de tempestade que não passa nunca.

- Cedo demais para pensar bobagem, disse ela.
- É o melhor momento, disse ele. Depois as bobagens nos impedem de pensar.

- Linda, disse ele.
- Não sou, disse ela.
- Que bom. Meus olhos odeiam concorrência