7 de novembro de 2015

A AMÉRICA DE LARS VON TRIER



O sentimento de pertença ao Brasil e seu antagonismo à invasão cultural americana é um dos pontos fortes da obra de Miguel Lobato Duclós (1978-2015) no seu blog http://blog.cybershark.net/miguel/ . Sintomaticamente, seu ultimo post, de 2014, refere-se ao vexame brasileiro diante da Alemanha, num esquema que agora esta sendo denunciado como de corrupção.

Na sua missão autoral, Miguel abordava profundamente os filmes que lhe diziam respeito, que o impactavam, sem atentar para o fato de serem cults ou não. Entre tanta superficialidade, em que a Sétima Arte foi reduzida a um desfile de celebridades artificiais, cada palavra de Miguel era um libelo, sem cair no denuncismo, já que amparava sua percepção em leituras fundamentais.

No texto a seguir, de 11 de novembro de 2004, ele aborda a obra do cineasta Lars Von Trier como a representação ao que a América foi reduzida na era Bush. Uma aguda análise do momento em que vivíamos na época e que se mantém firme apesar das mudanças aparentes.

“DOGVILLE”

MIGUEL DUCLÓS

“Dogville é o primeiro filme do cineasta dinamarquês Lars Von Trier de uma trilogia sobre os Estados Unidos. A construção cenográfica do filme chamou a atenção por sua forma peculiar, teatral, bretchiana. Quase todas as tomadas foram feitas na primeira tentativa e não há externas, somente um cenário onde estão desenhados no chão, com giz, os contornos das ruas e casas da pequena cidade em que se desenrola a história. Esse esforço minimalista gera uma extenuação, um desconforto, por parte de quem assiste, forçando-nos a utilizar uma parte de nossa atenção a que não estamos acostumados: pausada, contínua, avessa à fragmentação publicitária. Também a carga dramática das atuações dos atores é maximizada, pois eles são praticamente tudo o que você vê na tela. O filme tem sido saudado pelos cinéfilos como uma grata novidade e a melhor coisa que se produziu nos últimos anos.

A história gira em torno de Grace (Nicole Kidman), uma moça que chega fugindo da máfia a uma cidadezinha do interior, causando tremenda controvérsia. Depois de uma reunião da Igreja, apoiada pelo seu amigo filósofo Tom, ela consegue a acolhida e proteção da cidade, mas em troca tem de prestar pequenos serviços para a comunidade. O problema é que os habitantes começam a exagerar na carga, usando-se livremente do trabalho quase escravo de Grace e por fim abusando sexualmente – um tema recorrente nos filmes dos cineastas do Dogma-, humilhando e prendendo-a fisicamente, num quadro crescente de crueldade e hipocrisia. O pequeno espaço físico da cidade se torna uma prisão caustificante, de fuga difícil. Grace a tudo se submete, até que, ao final, seu pai mafioso chega a cidade e a traz de volta, metralhando e incediando todos os habitantes, menos o cão, também uma figura no chão do qual só se ouve o latido.

O filme é complexo e sua interpretação é difícil. Uma leitura possível é tomar Dogville como um microcosmo da América, inicialmente associada aos valores de liberdade, proteção, livre-iniciativa, com uma constituição assentada em firmes bases filosóficas. Um lugar onde o estrangeiro pode chegar, e contando com o “verdadeiro capitalismo” ascender através do seu próprio esforço e trabalho. Mas aos poucos essa origem se torna um simulacro diante de acontecimentos desastrosos, e no entanto o mesmo discurso continua a imperar, como na retórica de Bush de ser um enviado que garante a liberdade no mundo. A única coisa capaz de manter esse quadro de injustiça e ainda assim continuar advogar para si seu discurso original seria a crescente hipocrisia da sociedade americana, que reelegeu Bush mesmo apesar de suas fraudes e mentiras, depois de quase destituir Clinton por uma simples mentira ao Senado.

Dog seria então anagrama de God, e Grace (graça) o anjo enviado para testar. A mensagem do filme e a redenção final, então, é quase religiosa. Os Eua perderam-se e prenderam-se em seu próprio autocentrismo, criando um pequeno mundo claustofóbrico e oprimindo o mundo com isso, como bem mostra o artigo de Nei Duclós O Círculo de giz da América. Mas a abertura existe, e a chegada do mafioso os reduz a pó, apesar dos protestos de Grace, que diz que “eles não sabem o que fazem”.

A vila é, então, como um tipo de atenção humana, uma armadilha que se torna intensa e opressiva, dando a impressão de ser tudo o que existe, de não haver alternativa.

Significativo são as projeções finais do filme, onde aparecem retratos da américa em depressão na década de caipira, provinciada, decadente. O som ao fundo é o “Young Americans” de David Bowie, que lembra a relativa juventude dos EUA em relação a história e situação absolutamente inédita, também recente, de uma única potência efetivamente global querendo fazer valer seu império. Restaria saber quem vai cumprir o papel atribuído ao pai de Grace. Talvez, num viés político, uma velha Europa que até agora tem aceitado o papel de coadjuvante, ou se considerarmos a devoção religiosa do “monge” Trier, a saída seja apontada pelo próprio Deus.

Nicole é uma estrela de Hollywood que foi trazida de seu mundinho para a vida (ir)real por Stanley Kubrick, em “De Olhos Bem Fechados, e desde então vem fazendo filmes de arte. O filme de Kubrick é toda uma denúncia sobre a pseudo-elite que ocupa as páginas do noticiário, atraindo a atenção de todos, no filme emblematizado pelo casal protagonista, mas podendo ser qualquer juiz, governante (Bush), personalidade a quem se atribui poder, mas que são na verdade como “laranjas” ou bodes expiatórios. O verdadeiro poder, a verdadeira elite, aponta o diretor, são verdadeiramente secretos e algo muito mais extensos, louco e manipulador do que se pensa. Uma realidade paralela do qual só pode se entrar através da mensagem cifrada, de olhos vendados, onde trabalham aqueles que aprisionaram o mundo num sistema de rotina que consome toda a nossa energia, mas que se diverte e não precisa se preocupar com esse sistema que criaram, falso e contrário a natureza humana.

De qualquer forma, Dogville parece ter entendido o recado da importância do cinema americano como porta voz da América e seus valores e usa-se do mesmo artíficio da linguagem cifrada, só que através de uma linguagem muito mais sofisticada que torna a simbologia tradicional dos filmes americanos quase caricata.” (Miguel Duclós)

http://blog.cybershark.net/miguel/2004/11/11/dogville/

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