27 de novembro de 2015

MITOLOGIA NA INDÚSTRIA DO ESPETÁCULO




Miguel Lobato Duclós (1978-2015) aborda filosófica e politicamente os signos universais em Shrek2, provando que seu insumo para a produção do pensamento está disponível no que o mundo contemporâneo oferece. Cruzando o sucesso cinematográfico com filósofos importantes e detectando as nuances na construção dos mitos da narrativa exposta no filme, Miguel nos ilumina com sua percepção profunda do que era para ser apenas superfície. Tudo era motivo para o exercício cultural neste Amigo do Saber.



Essas abordagens eram comuns nas conversas que mantínhamos quase diariamente. Eu me acostumei ao pensamento crítico e profundo de Miguel, ao qual recorria sempre que algo me invocava, seja notícia, filme, livro etc.Ou simplesmente pelo prazer do debate e da conversa.



O texto a seguir está no seu blog desde 2004 e foi publicado em 2007 na seção de ensaios da revista Contextura, do corpo discente de Filosofia da FFLCH da Universidade Federal de Minas Gerais.


http://blog.cybershark.net/miguel/2004/08/21/tudo-dominado/

“TUDO DOMINADO”



MIGUEL DUCLÓS

“Shrek 2” é uma animação dos estúdios Dreamworks sobre um ogro simpático e zangado, que fez enorme sucesso de crítica e público. As animações da Dreamwork, desde FormiguinhaZ, tem concorrido diretamente com as da Disney, primaziando um humor adulto e inteligente, e vêm levando a melhor.

O filme é uma sátira ao contos de fadas, parodia todos os clichês da construção da narrativa infantil e é repleto de citações e gags sobre o cinema em geral. Parece dar primazia a uma visão politicamente correta de inclusão social, onde o feio é belo e deve ser aceito: o ogro comete nojeirices e foge dos padrões publicitários de beleza, quebrando todas as regras de bom gosto social.

Essa temática me lembrou as discussões dos ensaios da filósofa norte-americana Nancy Fraser sobre as “demandas por redistribuição” e as “demandas por reconhecimento”. Grosso modo, pode-se dizer que para os grupos que a autora identifica, não bastariam apenas a inclusão econômica ao sistema, mas também o reconhecimento e inclusões culturais. Os dois tipos de demanda partem de uma aparente contradição: enquanto a primeira busca homogeneizar, a segunda busca diversificar. Uma minoria como “lésbicas” não tem, em sua forma, uma demanda por redistribuição, mas por reconhecimento, ao passo que a classe operária busca mais a redistribuição.

A redistribuição de renda busca acabar com a desigualdade social e diminuir as acintosas diferenças entre as classes. Já uma política de reconhecimento cultural deve valorizar a identidade de cada grupo, formando um mosaico heterogênio no espaço público. Como conciliar essa aparente contradição na efetivização de políticas é a questão da autora, que dialoga diretamente com Habermas e a terceira geração da Teoria Crítica.

O que mais me chamou a atenção no Shrek 2 é a composição de uma “utopia”, a hollywoodiana Far-Far-Away onde a magia já estaria totalmente sob controle e mesmo a serviço do sistema econômico. Isso fica claro quando se revela que a realizadora de sonhos Fada-Madrinha, evocada através do sentimento e emoção de uma lágrima, é na verdade a vilã da história, uma eficiente manipuladora política e inescrupulosa diretora de um complexo industrial químico de fabricação de poções mágicas.

Atualmente, isso parece estar bem claro quando consideramos o fim das ideologias e a desilusão política no mundo após a queda do Muro de Berlim. As lutas e perseveranças em defesa das minorias não encontraram um substituto teórico com consistência suficiente para tomar lugar do marxismo, que foi dado como enterrado e demonizado por conta do seu aparente “fracasso prático”. Aqui, estendendo a impossibilidade não apenas da magia, mas também das emancipações.

Lembramos aqui da frase do francês Gilles Deleuze de que “a publicidade se apoderou da tarefa da filosofia de criar conceitos”. Também notamos esse aprisionamento da abertura, do mágico, quando vemos com que recorrência a mídia usa aspectos irracionais e emocionais para provocar a ilusão de que o lançamento de novos produtos da indústria trazem alguma real “novidade”. As propagandas de comida, por exemplo, sempre apelam para o “irresistível” sabor, e outras para a inveja, competição, sexualidade e aspectos desse tipo.

Sabemos também como a indústria cultural se apropriou de grandes reviravoltas culturais de nossa sociedade, como o rock, amordaçando a sua continuidade e sua inventividade através de uma política de imbecilização musical da massa. Uma arte emancipatória como a de Morrison, Hendrix etc, viraram produtos como qualquer outro: compre o CD, veja o vídeo, vista a camiseta.

O ponto dúbio é que essa mesma revolta só irrompeu e se propagou graças a essa mesma indústria cultural. Ao mesmo tempo em que submete uma política corportativa, ela também possibilita a ascenção e divulgação de talentos. Um Beethoven ouvido em elevador não vai deixar de ser Beethoven, embora sua compreensão passe pela ritualística e gravidade de assistir uma orquestra ao vivo.

A cena mais impressionante do Shrek 2 ocorre quando, após roubar uma poção mágica de beleza, os personagens Shrek, Burro e Gato de botas começam a discutir sobre ela como se fossem um trio hesitante em tomar alguma droga psicodélica, como o LSD-25. Se vocês lembram, eles discutem sobre os possíveis efeitos catastróficos e profundos que ela possa causar, num crescente de apreensão e respeito. Após finalmente tomar a poção, um efeito de distorção tremendo lembra-nos do potencial psicodélico de uma animação, como no clássico Yellow Submarine. Mas de repente, esse efeito se anuvia, e tudo volta ao normal. Era apenas uma tempestade que começava. Rindo, eles se afastam. Uma gota da poção que havia caido num cogumelo – outro alucinógeno conhecido – o transforma, no entanto, numa linda e inofensiva flor.

Bem, nem é preciso dizer, está “tudo dominado”. O espaço para a mitologia, para a verdadeira religião, viagem perceptiva, fantasia e criação literária, parece perder o que um dia teve de novidade. Os grandes caíram, e tudo voltou a ser como antes. Devemos viver então sempre na mesmice, nos padrões, falta de surpresa? Ainda bem que o desfecho deste filme parece dizer que não. O perigo que temos é que a própria reflexão crítica e a própria arte emancipadora sejam incorporadas e classificadas nos padrões usuais, perdendo assim a legitimidade que a caracteriza, e tornando-se mais um “caso de consciência” a que se pode pensar normalmente, na miséria usual. Como aconselhou Raul Seixas, “conserve seu medo”.

Miguel Lobato Duclós (1978-2015)

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