2 de março de 2016

AO REDOR DO FUTURO



Nei Duclós

O futuro desapareceu porque mergulhamos nele. Tínhamos imaginado esta estação terminal e a profecia está sendo cumprida à risca. Tudo se intensifica e cada porção dos grupos humanos cobra a conta. O convívio se esgarça como um tecido exposto demasiadamente ao sereno. Apodrecem os vínculos, as linguagens se partem.

Ao mesmo tempo, como resposta ou efeito colateral da situação limite, a literatura se multiplica, se diversifica, se espalha por milhões de vozes de repente assumidas em mídias pulverizadas. Há vários níveis dessa produção gigantesca, não apenas em relação a gêneros de escritas ou falas, de fontes dispersas por continentes, mas de talentos variados que se cruzam em combinações abertas ou fechadas.

A literatura assim posta, em prosa ou poesia, ou nos estilhaços da linguagem em conluio com todas as artes, é um vetor, uma baliza, um imã, um instrumento na paz e na guerra, sendo exercida como ofício ou não, neutra ou engajada, espalhando-se ou implodindo, impregnada de um poder variável, que pode ser um petardo ou um sussurro. A literatura faz parte da natureza em declínio, ocupa espaço junto às folhas mortas, aos desertos, aos territórios poluídos ou devastados pela barbárie, junto ao rodopio dos tornados, à varredura dos tufões, aos detritos levados pelo tsunami, às contorções assombrosas do alto mar.

Não há inocência porque nada escapa ao terror da vida em radical transformação, mas pode haver limpeza de espírito, não a da vestal ou do fundamentalista, mas a do rosto claro e sem lágrima diante da tormenta. Falando por metáforas ou esgrimindo tecnicamente cada sílaba, na revoada de vogais em espinhos de consoantes, criar faz parte de um esforço coletivo, anônimo, espontâneo, muitas vezes involuntário de costura do mundo em pedaços. Missão fora de todas as molduras, pura concentração de raios e brilhos, de foscos caminhos, de trilhas ocultas, de minas soterradas.

Em qualquer lugar ou momento nasce a luz espiralada, o fogo em duelo com a chuva ácida, o amor entre as pedras, o voo cego, o pouso em horizontes riscados por deuses e enigmas, sujos cataventos movidos pelo sonho nunca alcançado de sermos melhores do que o destino.


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